Texto para o catálogo da exposição Histórias das mulheres: artistas até 1900, MASP, 2019
Histórias das mulheres: artistas até 1900
ARTIGO PRIMEIRO
A mulher nasce livre e permanece igual ao homem em [termos de] direitos. As distinções sociais [entre eles] não podemser fundamentadas, a menos que haja interesse comum.[1]
Histórias das mulheres é uma exposição que apresenta, cronologicamente, trabalhos de artistas de diferentes nacionalidades, numa perspectiva de longa duração, que chega até o final do século 19. Como o título indica, não se trata de uma história apenas, mas de histórias polifônicas, representadas por obras produzidas na Europa, nos Estados Unidos, no território da América Latina (antes e depois da colonização), na Índia, no antigo Império Otomano, em dois países da África mediterrânea (Marrocos e Egito) e também da Ásia (Filipinase atual Uzbequistão). Mas, afinal, qual o critério desta exposição, além do recorte de gênero? Acaso esta não seria uma reunião ocasional de trabalhos feitos ao longo de tantos anos, por mulheres?[2]
Segundo as historiadoras da arte Norma Broude e Mary D. Garrard, “a conformação coerente da categoria ‘mulher’ é uma impossibilidade teórica”,[3] pois não há como juntar tamanha diversidade numa só palavra, uma vez que cada mulher é formada por sua pessoal combinação de pertencimento a uma comunidade, cultura, território, classe etc., características que informam visões de mundo e maneiras absolutamente diversas de se relacionar com ele. Por outro lado, há uma “utilidade política em pensar sobre as mulheres como grupo”,[4] na medida em que se busca reavaliar desigualdades sociais e distorções históricas entre homens e mulheres — como sinalizam as autoras e como propõe esta exposição.
A diversidade estética, temática e técnica das obras expostas indicaque as artistas fizeram parte dos mais diferentes grupos que atravessaramas narrativas da história da arte.[5] Além disso, há de ficar evidente como,de fato, não há uma característica comum, uma espécie de “modo feminino” de criar ou de apreender o mundo, como alguns historiadores e críticos insistemem afirmar, quando se trata de um trabalho feito por uma artista.[6] Assim, a dificuldade de encontrar relações entre as obras se transforma em potência, na medida em que estão presentes questões acerca de dois critérios centrais à disciplina da história da arte: a diferença de valor entre masculino e feminino e a diferença de valor entre arte e artesanato, categorias que se equivalem, como se verá adiante. Linda Nochlin (1931-2017), historiadora e crítica de arte, nome fundamental para o reposicionamento das artistas do passado, coloca a questão nos seguintes termos:
Uma crítica feminista da disciplina da história da arte é necessária na medida em que pode romper limitações culturais-ideológicas a fim de revelar vieses e contradições, não somente em relação à questão das mulheres artistas, mas à formulação de questões cruciais da disciplina como um todo. A assim chamada “questão das mulheres”, longe de ser uma subquestão periférica, pode tornar-se catalisadora, potente instrumento intelectual para se esquadrinhar as premissas mais básicas e “naturais”, criando um paradigma para outros tipos de questionamentos internos e conexões com paradigmas de outros campos do conhecimento.[7]A análise das categorias masculino e feminino se desdobra em discussões mais complexas, que tratam não só do acesso de homens e mulheres aocircuito artístico, ou à educação de maneira geral, mas também sobre como as diferenças simbólicas de valor alteram a percepção das próprias obras. Ou seja, “a maneira como vemos as coisas é afetada por aquilo que conhecemos ou acreditamos”, nas palavras do historiador da arte John Berger (1926-2017).[8] Portanto, para que se possa entender as diversas históriasdas mulheres, é necessário atentar à pergunta: de que maneira as categorias de classificação simbólica condicionam as leituras das obras, que por sua vez informam a narrativa canônica da arte ocidental — branca, masculinae eurocêntrica? Lucy Lippard, historiadora da arte, curadora e ativista, coloca a questão nos seguintes termos:
A objeção mais evidente à noção de uma “arte feminina” é o receio básico de que a arte de um indivíduo não será vista com um olhar isento, ou vista com a mesma dedicação, ou vista como se gostaria que fosse vista, ou simplesmente vista, se preconceitos e categorizações a aniquilam. Mas seria ingênuo não perceber até que ponto isso ainda é verdade no mundo da arte de hoje. Eu tenho arrepios quando ouço falar da amável variedade de arte feita por mulheres amontoada como uma entidade singular. Tampouco penso que toda arte feminista ou feita por mulheres seja boa. Este não é nem mesmo o ponto, pois em todo caso, estou questionando o que seria arte de qualidade.[9]O que quer dizer arte “de qualidade”, ou simplesmente “arte”, em oposição a outras produções consideradas menores, dentro e fora do cânone? Quais os métodos e critérios de avaliação dos objetos e o que elesrepresentam? Como já foi dito, além de uma série de categorias que informama história da arte (como beleza, verdade, gênio, civilização), critérios como arte/artesanato e masculino/feminino, condicionam a maneira como vemosas obras, através da dissimulação de seus propósitos ou significados reais. Os valores simbólicos que fundamentam os critérios de classificação — tidos como objetivos — escondem a política por trás das imagens e das leituras quese faz delas. Berger conclui: “No fim das contas, a arte do passado vem sendo mistificada porque uma minoria privilegiada se esforça para inventar uma história que justifique, em retrospecto, o papel das classes dominantes”.[10]
A partir de um desejo de mudança e de reparação de desigualdades históricas, tais questões tornam-se centrais para apresentar, numa exposição, diversas e possíveis histórias das mulheres. Somente assim as artistas do passado poderão ser vistas em sua complexidade, e não como notas de rodapé da história tradicional ou, ainda, como exemplos que ilustram as discussões sobre a posição subalterna da mulher na sociedade. Em poucas palavras: por que razão um artista homem é simplesmente “artista” e uma artista mulher continua a ser marcada como “artista mulher”?[11] Se o gênero do artista influencia julgamentos de valor das obras, então é preciso desmontar a hierarquia baseada em critérios simbólicos enviesados que comprometem a leitura delas e produzem consequências reais aos grupos sociais identificados com o feminino.
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ARTIGO 4
A liberdade e a justiça consistem em conceder a outrem tudoo que [a alguém] pertence. Assim, o exercício dos direitos naturais da mulher não se limita, a não ser sob a tirania perpétua do homem que lhe opõe; estas fronteiras devem ser restabelecidas através das leis da natureza e da razão.
Se a categoria “mulher” é uma impossibilidade teórica, certamente há um sentido biológico de diferenciação sexual — a mulher como a “fêmea humana”, segundo a filósofa Simone de Beauvoir (1908-1986).[12] Há tambémoutro sentido, a um só tempo social, cultural e simbólico: um espaço de atribuições de valor, que opera através de duplas antagônicas. Nas palavrasdas historiadoras Arlette Farge e Natalie Zemon Davis,
A diferença entre os sexos é um espaço: um lugar onde a desigualdadeé racionalizada a fim de superá-la, um lugar da realidade que moldaos acontecimentos, um lugar imaginário e imaginado que conta, à suamaneira, as imagens, as histórias e os textos.[13]Contar as histórias das mulheres começa pelo reconhecimento deste lugarde racionalização das desigualdades, no plano teórico. Na história da arte, podemos citar vários debates, tratados e teorias que se fundamentam pormeio dos pares: ordem/caos, desenho/cor, construção/crise, figurativo/abstrato, masculino/feminino, objetivo/subjetivo, universal/contingente etc.[14] Há, portanto, uma equivalência entre a objetividade, a razão e o masculino de um lado e, de outro, a subjetividade, a emoção e o feminino — embora sejam equivalências desiguais,[15] “permeadas por uma violência que tanto sustenta quanto ratifica sua hierarquia”, nas palavras da curadora, historiadora e crítica de arte Abigail Solomon-Godeau.[16]
O influente arqueólogo Johann Joachim Winckelmann (1717-1768)a rgumentou, em suas “Reflexões sobre a imitação das obras gregas” (1755), que a beleza e a nobreza da estatuária clássica estariam na transcendênciada “forma usual da matéria”, ou seja, através da superação intelectual deseu aspecto contingente. E concluiu que:
[…] a característica geral distintiva das obras-primas gregas é uma nobre simplicidade e uma grandeza serena, tanto nas atitudes quanto nas expressões. Assim como as profundezas do mar sempre permanecem calmas, mesmo quando a superfície está furiosa, da mesma forma a expressão nas figuras dos gregos mostra, mesmo quando elas são presas das mais violentas paixões.[17]Adiante, Winckelmann refere-se a uma carta do pintor Rafael (1483-1520), para reiterar que beleza e ideia são conceitos correspondentes e que, ao mesmo tempo, opõem-se ao feminino. Ele explica a fatura do afresco O triunfo de Galeteia (1514) e resume esta tradição filosófica da arte em poucas palavras: “Como as belezas são tão raras nas mulheres, sirvo-me de uma certa ideia nascida em minha imaginação”.[18] Rafael transcende a realidade material, personificada pelas mulheres, e através de sua imaginação consegue alcançara beleza, um critério portanto masculino e ideal (é curioso notar que as duasfiguras femininas de seu afresco têm corpos masculinizados). Por outro lado, é possível especular que: uma vez que a arte se dá através da beleza, do intelecto e da imaginação, as mulheres seriam não apenas desprovidas debeleza, como diz o pintor, mas fundamentalmente incapazes de criar algo tão elevado quanto a arte.[19]
A equivalência teórica entre o mundo “inferior”, contingente e as mulheres é tão comum, que basta citar três fontes muito distantes entre si, que praticamente repetem o mesmo argumento. O poeta Giovanni Boccaccio (1313-1375) publica em 1374 De Claris Mulieribus [Sobre asmulheres célebres] e explica sua razão para a escrita do livro: “Presumi que essas conquistas mereciam algum elogio, pois a arte é muito estranha à mente das mulheres”.[20] Auguste Comte (1798-1857), sociólogo francês, afirma em sua “Théorie générale de l’ordre spontané des societés humaines” [Teoria da ordem espontânea das sociedades humanas] de 1839: “É indiscutível que as mulheres são, em geral, superiores aos homens em uma expressão espontânea de simpatia e sociabilidade, pois são inferiores aos homens na compreensão e na razão”.[21] Outro francês, um crítico dearte hoje em dia obscuro, afirmou nos idos de 1905 que: “Contanto que uma mulher não se ‘dessexualize’ para desenvolver genialidade, deixemos que ela explore um pouco de tudo. A mulher de gênio não existe; quando ela existe, é um homem”.[22]
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ARTIGO 6
A lei deve ser a expressão da necessidade geral; todas as Cidadãs e Cidadãos devem concorrer pessoalmente ou através de seus representantes, à sua formação; ela deve ser a mesma para todos: todas as Cidadãs e todos os Cidadãos, sendo iguais aos olhos da lei, devem ser igualmente aceitos em todos os títulos, lugarese cargos públicos, segundo suas capacidades e sem outra distinção que não aquelas de suas virtudes e de seus talentos.
Se, por um lado, é necessário reconhecer as estruturas simbólicas dadiferença sexual; por outro, é preciso notar que, por mais que sejam ferramentas discursivas importantes, as duplas não são estanques. É certo que existe desigualdade e descompasso de valores entre masculinoe feminino, mas este espaço teórico da diferença é “também um espaço em movimento e tensão, em que as mulheres, nem fatalmente vítimas nem heroínas excepcionais, se empenham de mil maneiras para serem sujeitos dahistória”.[23] Ou seja, mais que uma posição atribuída ao feminino em relação ao masculino, há na concepção das várias histórias das mulheres a ideia de posicionamento, de agência, a fim de situar seus trabalhos num outro lugar, mais fluido, entendendo a mulher como participante ativa de suas histórias. Como foi dito anteriormente, “mulheres não seriam capazes de produzir arte […], apenas crianças; [e] pensava-se que as mulheres eram incapazes de ter gênio artístico” — porém,[…]
quando artistas como Sofonisba Anguissola [1532-1625], Artemisia Gentileschi [1593-1653] e Elisabetta Sirani [1638-1665] contradisseram as definições socialmente constituídas de seu sexo, produzindo pinturas que revertiam os modelos normativos femininos, elas colocaram em movimento a resistência cultural como agência. É importante notar que há uma dinâmica aí envolvida: o programa artístico dessas pintoras se formou, em parte, a partir de suas respostas pessoais às estruturas de gênero existentes.[24]Dentre os modelos normativos, uma das estruturas da diferença gênero se fundamenta entre o público e o privado. A distinção mais óbvia é aquela de uma sociedade que liga os homens ao espaço público — efetivamenteocupado por eles, na política, nos tribunais, nas universidades e nas academias de arte — e as mulheres ao espaço privado — simbolicamente, ou na realidade das mulheres de classes média e alta.[25] Por isso Anguissola, Gentileschi e Sirani teriam revertido os normativos femininos, transgredindo normas, questionando valores, estabelecendo suas posições. Nesse sentido, a escritora e teórica do feminismo e das políticas visuais, bell hooks, nos faz pensar no corpo, e o que era visto como constrangimento material, torna-se um valioso recurso:
Para transgredir eu preciso mover limites passados, eu preciso forçar para seguir. Nada muda no mundo se não se está disposto a fazer este movimento. […] O fato de que a palavra transgredir aparece mais frequentemente nas discussões do sexual é um indicativo de que o corpo é a barreira fundamental do ser. Para transgredir é precisoretornar ao corpo.[26]____
ARTIGO 13
Para a conservação da força pública e para as despesas de administração, as contribuições da mulher e do homem são iguais; ela toma parte de todos os esforços, de todas as tarefas penosas; ela deve então ter a mesma parte na distribuição dos postos, dos empregos, dos encargos, das honrarias e dos ofícios.
O corpo é contingente: inserido no mundo real, ele sofre suas consequências,se deforma ao longo do tempo, está sujeito à morte. Assim, o corpoé o antípoda do mundo transcendente, ideal, verdadeiro, belo (noções carasao cânone ocidental) e está associado ao feminino, ao espaço domésticoe íntimo, e às “artes menores”.
Desde os pioneiros teóricos da arte, Leon Battista Alberti (1404-1472) e Giorgio Vasari (1511-1574), as artes maiores são de ordem pública: esculturas monumentais, pinturas que narram fatos históricos e projetos arquitetônicos, obras simbolicamente masculinas e idealmente feitas por homens; e é neste momento que se estabelece o valor da autoria individual. Nas palavras de Whitney Chadwick,
A origem do foco da história da arte em personalidades e no trabalhode indivíduos excepcionais pode ser traçado até o desejo, no início do Renascimento, de celebrar as cidades italianas e os feitos de seus mais notáveis cidadãos homens. O novo ideal do artista como um homem instruído e do trabalho de arte como a expressão singular de um indivíduo talentoso aparece pela primeira vez no tratado de Alberti, Da pintura, publicado em 1435.[27]Como se pode notar, tais critérios de valor trazem consigo um desejo de afirmação geopolítica das ricas cidades italianas em relação aos outros territórios com os quais se relacionavam comercial e culturalmente, através do Mediterrâneo. No discurso está a pretensão de que os artefatos produzidos pelos cidadãos italianos sejam “arte”, superiores àqueles de outros povos e nações, por mais refinados ou bem-acabados que sejam. E talvez seja possível dizer que tais critérios de valor “geopolíticos” da arte se ampliaram e se estabeleceram através da colonização de territórios americanos, africanos e asiáticos.
O discurso colonial, como se sabe, costuma desprezar as diversas produções culturais dos povos subjugados, embora seja reconhecidaa qualidade de algumas das peças produzidas nas possessões ultramarinas. É possível demonstrar este apreço a partir de alguns exemplos: em 10 de julho de 1519, Hernán Cortéz (1485-1547), o “conquistador” encarregadoda expedição de destruição dos astecas, escreve ao rei da Espanha contando que “me deu o dito Moctezuma roupa da sua que […] em todo o mundo não se podia tecer outra igual”,[28] enviando-lhe alguns exemplares de presente; em 1568, na região de Chucuito, atual Peru, há registros de que cerca de mil trajes Inca foram doados a administradores espanhóis.[29] Em 1689, o rei da Dinamarca adquire, para sua coleção, um manto tupinambá feito de penas vermelhas, hoje em dia na coleção etnográfica do Museu Nacional em Copenhague. Já na virada do século 18 para o 19, Dominique Vivant-Denon (1747-1825), primeiro diretor do museu do Louvre, realiza expedições às colônias francesas no norte da África a fim de reunir os mais sofisticados objetos e artefatos locais e levá-los para a França.[30]
Assim, a diferença de gênero, no âmbito da história da arte ocidental, se estabelece por meio de imbrincadas relações de poder que envolvem não apenas homens e mulheres, mas também disputas políticas e investimentos coloniais. Esse espaço da racionalização da diferença, que se cristalizou ao longo dos séculos, é amplamente fundado no discurso da diferença: os homens do Renascimento — particularmente aqueles ligados à Florença — seriam mais “verdadeiros” que os “outros”. E então os “outros” podem ser muitos outros: ameríndios, africanos, asiáticos, mulheres; até mesmo os europeus que os antecederam, cuja produção artística se baseava em cooperativas, e não na figura do autor.
Além de pinturas, Histórias das mulheres traz também exemplos de trabalhos que fogem ao cânone das belas artes — ou, melhor dizendo, que não derivam dele: tecidos cuja fatura é tradicionalmente associada às mulheres. Embora anônimos, sabe-se que a produção de têxteis — em muitas culturas, mas não todas — é atributo de uma ou mais mulheres, cujas evidências estão em ferramentas de tecelagem encontradas de maneira recorrente em sepulturas femininas, na iconografia de mulheres tecendoou costurando (em vasos, papiros, fotografias), em relatos e depoimentos, além de tradições que permanecem vivas até hoje. Mesmo que a informação dos nomes tenha se perdido (algo que dificulta catalogações e pesquisas), observar a impressionante complexidade dos têxteis, lado a lado com as pinturas, ajuda a repensar as categorias de valor do cânone ocidental — a começar pela diferença de gênero.
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ARTIGO 16
Há um saber acumulado que informa e inspira Histórias das mulheres. Para citar alguns exemplos, ainda no século 19, a Union des femmes peintres et scuplteurs [União de mulheres pintoras e escultoras] organizou em Paris vários salões dedicados ao trabalho das mulheres, cuja primeira exposição, em 1882, reuniu 30 artistas, e, sete anos depois, mais de 400. Em 1905, foi publicado na Inglaterra Women Painters of the World [Mulheres pintoras domundo], “da época de Caterina Vigri [1413-1463], à Rosa Bonheur [1822-1899] e os dias presentes”.[31] No Brasil, foi organizada a exposição Contribuição da mulher às artes plásticas no país, no Museu de Arte Moderna de São Paulo, entre 1960 e 1961, concebida por Paulo Mendes de Almeida (1905-1986) e levada a cabo por Mário Pedrosa (1900-1981). Em 1976, a Linda Nochlin e Ann Sutherland-Harris organizaram a famosa exposição Women Artists [Mulheres artistas], abarcando um grande arco temporal: de 1550 a 1950.[32] Mais recentemente no Brasil, também foram organizadas, por Ruth Sprung Tarasantchi, Mulheres pintoras: a casa e o mundo (em 2004) e Mulheres artistas: as pioneiras, curada por Ana Paula Cavalcanti Simioni e Elaine Dias (em 2015), ambas na Pinacoteca do Estado de São Paulo.
Toda sociedade, na qual a garantia de direitos não é assegurada, ou a separação dos poderes determinada, não tem constituição; a constituição é nula se a maioria dos indivíduos que compõem a nação não contribuem para sua redação.
Como procurei argumentar, o resgate do trabalho de artistas mulheres “esquecidas” pode ser muito interessante na medida em que desestabiliza critérios de valor e de diferença que conformam a história da arte ocidental. Além disso, se a ideia de arte foi inventada na Itália entre os séculos 15 e 16, me parece que nós, latino-americanos, sabemos que objetos “artísticos” — ou seja, complexos do ponto de vista da estética, da técnica e em sua relação a uma sociedade — são muito mais antigos. Em nosso território floresceram civilizações de grande relevância cultural antes da chegada dos colonizadores (incluindo algumas que existem até hoje), sem contar as culturas ancestrais que foram trazidas com os africanos e africanas escravizados e forçadosa migrar. Assim, quem sabe a América Latina não seja um território privilegiado para refletir sobre as diversas Histórias das mulheres e o cânone da história da arte?[33] A partir de um desejo de reavaliar esta narrativa desigual, distorcida e racista, talvez seja possível dizer que o debate sobre a posição das artistas na história da arte nos desafia a realizar uma revisão crítica e decolonial das culturas materiais subalternas — eis toda a potência do trabalho das mulheres artistas.
Notas
[1] Olympe de Gouges (pseudônimo de Marie Gouze, 1748-1793). “Déclarationdes droits de la femme et de la citoyenne” [Declaração dos direitos da mulher e dacidadã], Paris, 1791. Trechos desse texto jurídico serão utilizados em todas asepígrafes deste ensaio. Gouges foi escritora,dramaturga, abolicionista e é considerada uma das primeiras feministas francesas. Por sua atuação política, ela foi guilhotinada em praça pública aos 45 anos. O original está disponível em <gallica.bnf.fr/essentiels/anthologie/declaration-droits-femme--citoyenne-0>. Acesso em 12.4.2019. Todas as traduções das epígrafes e citações são minhas, exceto quando indicado.
[2] Exposições coletivas de artistas mulheres vêm acontecendo há mais de cem anos, a ponto de alguns pesquisadores sugerirem que o assunto possa constituir um campo de pesquisa autônomo, não apenas subordinado ao das histórias das exposições. Ver Hanna Alkema e Catherine Dossin (eds.).“WAS – Women Artists Shows.Salons.Societies – Group Exhibitions of Women Artists 1876-1976”, Artl@s Bulletin, 8, n. 1, 2019, publicação do seminário realizado em dezembro de 2017, em Paris. As apresentações estão disponíveisem <awarewomenartists.com/en/nos_evenements/was-women-artists-shows--salons-societies-expositions-collectives-de-femmes-artistes-1876-1976>. Acesso em 23.5.2019.
[3] Norma Broude e Mary D. Garrard (orgs.), Reclaiming Female Agency: Feminist ArtHistory after Postmodernism. Berkeley: University of California Press, 2005, p. 2.
[4] Idem, ibid., p. 2.
[5] Pode-se notar diversidade semelhante entre os artistas homens da coleção do MASP, em exposição no segundo andar do museu. As obras que estão ou que já foram expostas em Acervo em transformação são um interessante espelho para Histórias das mulheres, pois, se utilizarmos o mesmo marco temporal (artistas até 1900), nota-se a quase totalidade de homens, com exceções pontuais: um autorretrato da artista Alcipe e quatro urnas marajoaras anônimas.
[6] O caso da pintora holandesa Judith Leyster (1609-1660) é emblemático.“Esquecida” logo após sua morte, ela foi “redescoberta” quando o Louvre comprou, em 1893, uma obra atribuída a Frans Hals (1582-1666). Feita a limpeza, descobriu-se uma assinatura diferente, em forma de estrela. Em seguida, vários documentos foram encontrados, revelando a identidade da artista. Leyster foi membro da prestigiosa Guilda de São Lucas e, inclusive, processou seu colega Hals por uma dívida financeira. Retificada a autoria da pintura, os críticos e historiadores passaram a notar traços “delicados” e “femininos” que não existiam antes. James A. Welu e Pieter Biesboer, Judith Leyster: a Dutch Master and Her World. Haarlem/Massachusetts: FransHalsmuseum/Worcester Art Museum, 1993, especialmente o ensaio de Frima Fox Hofrichter, “The Eclipse of a Leading Star”, pp. 115-21.
[7] Linda Nochlin, “Why Have There BeenNo Great Women Artists?”. In: Thomas B. Hess e Elizabeth C. Baker (eds.), Art and Sexual Politics Nova York: Collier, 1971, p. 2. Uma tradução para o português foi publicadaem Histórias da sexualidade: antologia. São Paulo: MASP, 2017, pp. 16-37.
[8] John Berger, Ways of Seeing. Londres: Penguin, 2008, p. 8.
[9] Lucy Lippard, “Projecting a Feminist Criticism”. Art Journal, n. 35, 1976, p. 338.
[10] John Berger, 2008, op. cit., p. 11.
[11] O fato de uma artista ser marcada, praticamente sempre, como mulher, ocorre tanto de maneira explícita — com o uso daspalavras “mulher” e “feminina” — ou através de estratégias mais sutis, como a utilização reiterada de seus primeiros nomes. Assimos homens são referidos apenas por seus sobrenomes: Botticelli, Caravaggio, Chardin, Gauguin etc., enquanto as mulheres carregam o indicativo de seu sexo: Sofonisba Anguissola, Artemisia Gentileschi, Judith Leyster, Angelica Kauffmann, Mary Cassatt etc. Outra dificuldade com a qual se deparamos pesquisadores é o fato de as mulheres mudarem de nome depois do casamento.
[12] Simone de Beauvoir, “Os dados dabiologia”. In: O segundo sexo, v. 1. São Paulo: Martins Fontes, 2017, pp. 31-65. “A mulher? É muito simples, dizem os amadores de fórmulas simples: é uma matriz, um ovário; é uma fêmea, e esta palavra basta para defini-la.” Trad. Sérgio Milliet.
[13] Arlette Farge e Natalie Zemon Davis, “Introduction”. In: Georges Duby e Michelle Perrot, Histoire des femmes en occident. Paris: Perrin, 2002, pp. 14-15.
[14] Heinrich Wölfflin, Conceitos fundamentais da história da arte. Trad. João Azenha Jr. São Paulo: Martins Fontes, 2015.
[15] Simone de Beauvoir, 2017, op. cit., pp. 11-12: “Um homem não teria a ideia de escrever um livro sobre a situação singular que ocupam os machos na humanidade. Se quero definir-me, sou obrigada a declarar: ‘Sou uma mulher’. […] O homem representa a um tempo o positivo e o neutro, a ponto de dizermos ‘os homens’ para designar os seres humanos […]. A mulher aparece como negativo, de modo que toda a determinação lhe é imputada como limitação, sem reciprocidade”. Trad. Sérgio Milliet.
[16] Abigail Solomon-Godeau, Mistaken Identities. Santa Barbara, CA: University of California Press, 1993, p. 21.
[17] Johan Joachim Winckelmann,“Reflexões sobre a imitação das obras gregas”. In: Jacqueline Lichtenstein (ed.). A pintura: textos essenciais. v. 4, o Belo. Trad. Magnólia Costa. São Paulo: Editora 34, 2004, p. 84.
[18] Idem, ibid., p. 80.
[19] Entre fins do século 19 e inícios do 20, esta afirmação ganha autoridade científica: “Entre os últimos [os homens], os lobos frontais — onde se concorda que o órgão das operações intelectuais e funções físicas superiores se situa — são dominantes [e] são muito mais bonitos e volumosos entreas raças mais civilizadas. Entre as mulheres, são os lobos ocipitais, em que são mais desenvolvidos e têm mais importância, e é neles que a fisiologia situa os centros emocionais e sensíveis. Isto, portanto, corresponde bem com as características psicológicas dos dois sexos, o masculino apresentando mais inteligência e o feminino dotado de uma grande sensibilidade”. J. Lourbet, Le problème des sexes. Paris, 1900, p. 44. Apud Tamar Garb, “L’Art féminin”. In: Norma Broude e Mary D.Garrard (eds.). The Expanding Discourse: Feminism and Art History. Boulder: Westview Press, 1992, p. 217.
[20] Giovanni Boccaccio, Famous Women. Tradução do latim de Virginia Brown.Cambridge/Londres: Harvard University Press, 2003, capítulo LIX, p. 124.
[21] Auguste Comte apud Norma Broudee Mary D. Garrard (eds.), op. cit., p. 218.
[22] Octave Uzanne. La femme moderne.Paris: 1912 apud Roszika Parker e Griselda Pollock, Old Mistresses, op. cit., p. 8.
[23] Arlette Farge e Natalie Zemon Davis, op. cit., pp. 14-15. No original, as autoras fazem uma brincadeira e feminizam a palavra “sujeito” (sujet) para “sujeita” (sujette).
[24] Norma Broude e Mary D. Garrard (eds.), op. cit., p. 4.
[25] Como foi demonstrado pela filósofa Angela Davis, o mito da mulher ligada às tarefas domésticas é um poderoso discurso ideológico, mas jamais se recorreu a ele quando a força do trabalho feminino foi necessária para os sistemas econômicos, tanto o escravocrata, quanto o capitalista fabril. Ver Angela Davis, Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016, especialmente o capítulo 9. Infelizmente, essa discussão foge do escopo deste ensaio, que tratará apenas da ideia do feminino, e não da realidade das mulheres em si.[26] bell hooks, “Being the Subject of Art”. In: Art on my Mind. Visual Politics. Nova York: The New Press, 1995, p. 133.
[27] Whitney Chadwick, “Art History and the Woman Artist”. In: Women, Art, and Society. Nova York: Thames and Hudson, 2007, p. 17.
[28] Elena Philips. “The Iberian Globe. Textile traditions and Trade in Latin America”. In: Amelia Peck (ed.). Interwoven Globe. The Workdwide Textile Trade, 1500-1800. Nova York: The MetropolitanMuseum of Art, 2014, pp. 30-32.
[29] Silvio Arturo Zavala, El servicio personal de los indios en Perú: extractos del siglo XVI-XVIII. Cidade do México: El Colégio de México, 1978. Apud Elena Philips, op. cit., p. 312, nota 12.
[30] Agradeço a Helouise Costa por estainformação.
[31] Walter Shaw Sparrow (ed.). Women Painters of the World. Londres: Hodder & Stoughton, 1905. Disponível em: <http://www.gutenberg.org/ebooks/39000?msg=welcome_stranger>. Acesso em 24.4.2019.
[32] Ann Sutherland Harris e Linda Nochlin, Women Artists, 1550-1950. Los Angeles/Nova York: LACMA/Alfred A. Knopf, 1977.
[33] Sobre um feminismo “das” diferençase não “da” diferença binária, a partir daperspectiva da América Latina, ver Nelly Richard, “Feminismo, experiência e representação”. In: Histórias das mulheres, histórias feministas: antologia. São Paulo: MASP, 2019.