
Apenas dois passos para trás
Para ver as pinturas, não é preciso muito; apenas dois passos para trás. Este “apenas”, no entanto, pode ser imenso: um gesto que cabe num sem-número de lugares, como um espaço de intimidade ou os pequenos cômodos que servem de ateliê para a maioria dos artistas. Cabe também nas vidas das infinitas pessoas que não se identificam com a figura de um herói, imponente, arrogante.
O gesto é o bastante para ver as pinturas de pequeno formato de Marcela Dias, Heitor Dutra e Pilar Rodriguez, em cartaz no Museu Murillo La Greca. E há muito o que se ver, considerando a vocação intimista — e aberta — das obras. Na verdade, esta “constelação” de pequenas pinturas convida o espectador a dar dois passos para trás no sentido de suspender por um momento o utilitarismo das ações cotidianas. “Agora”, escreveu o poeta Manoel de Barros, “não quero saber de mais nada, só quero aperfeiçoar o que não sei”.
Os artistas estabeleceram entre si um jogo: nenhuma pintura poderia ser maior que 10 × 15 cm e todas deveriam ser criadas especialmente para a exposição. Além disso, pequenos formatos são propícios à experimentação. O tamanho não os intimida — e, de fato, não pretende intimidar ou causar espanto naqueles que as veem, como é o caso da pintura histórica de grandes dimensões, seja ela acadêmica, moderna ou contemporânea.
Marcela Dias cria campos cromáticos, às vezes sobrepostos, às vezes com grande quantidade de matéria ou deixando visíveis as marcas do pincel. Apesar de serem delimitados, ainda guardam o gesto da artista, e as composições parecem se mover num equilíbrio instável — tanto em relação às formas, quanto no que diz respeito aos seus possíveis significados.
Um Discurso mais parece uma pedra que, ladeada por densa camada de azul, se constrói em negativo, o exato oposto de uma pedra. Em Aparição, uma mancha clara foi depositada sobre o fundo violeta, desestabilizando a composição de formas horizontais que poderia ser uma paisagem, mas é pintura. Num Sonho noturno, bolinhas parecem se desprender do quadro, não se sabe ao certo para onde. O que importa são as indefinições, a curiosidade de quem se permite também estar em movimento.
Heitor Dutra cria uma espécie de catálogo pitoresco, reunindo imagens de objetos e das próprias imagens, inclusive aquelas sedimentadas pela história da arte. O uso do stencil faz com que as formas “flutuem” na pintura, isoladas no primeiro plano devido ao acúmulo de tinta que as preenche, como um bloco. Ao fundo, há paisagens de colinas, praias, florestas e montanhas, às vezes construídas segundo a tradicional divisão do quadro em terços, outras com a linha do horizonte no centro da tela.
Tanto as paisagens quanto as figuras são facilmente reconhecíveis: há dinossauros de brinquedo, uma máquina de café, produtos do McDonald's, pinturas de Matisse, brigadeiros... Se considerarmos que um clichê, na acepção tipográfica, é um elemento gráfico que acompanha um texto, ao enfatizar as imagens — de maneira afetiva e irônica —, Dutra sugere que elas têm vida própria, para muito além do discurso escrito.
E fiz uma brincadeira. Botei um pouco de inocência na erudição. Deu certo. Meu olho começou a ver de novo as pobres coisas do chão [...]. E vi que o homem não tem soberania nem pra ser um bentevi.1
Pilar Rodriguez cria Música para ostras, Buracos e outras paisagens insólitas. De paleta menos saturada (e, em alguns casos, usando apenas as cores branca ou preta), suas pequenas pinturas lembram superfícies rochosas, ou fósseis, cujos sedimentos levam milênios para se formar. Como não imaginar o encantamento de nossos antepassados que observaram o mundo à sua volta e nos legaram imagens sobre pedra? É algo que jamais saberemos ao certo, mas talvez seja possível dizer que algum grau de ficção nos une, enquanto animais humanos.
A artista extrapola o campo bidimensional da pintura, criando relevos, depressões, fissuras e superfícies quase esculturais, com lâminas vincadas. As obras são um convite para que examinemos de perto seus vazios e reentrâncias, sabendo de antemão que não haverá nenhum segredo a ser desvelado.
Nas Memórias inventadas, Manoel de Barros nos conta:
O pai completou: ele precisava de ver outras
coisas além de ficar ouvindo só o canto dos
pássaros.
E a mãe disse mais: esse menino vai passar
a vida enfiando água no espeto!
Foi quase.
Apenas, pequenas, quase.
Há muito o que se ver quando se dá dois passos para trás.
1 Memórias inventadas. A terceira infância. São Paulo: Planeta, 2008, sem indicação de página. As citações a seguir fazem parte do mesmo livro.

