Galeria Madragoa, Lisboa, maio de 2022, disponível [aqui]

Adrián Balseca: um museu de commodities
Não há lugar no planeta que não esteja ligado de modo mais ou menos direto ao sistema-mundo que se constituiu a partir de 1492. […] Desde então, a superexploração da natureza e do trabalho passou a constituir o lugar da América Profunda/Abya Yala no sistema centro-periferia que se instalou. — Walter Porto-Gonçalves [1]
Depois de ser adiada por um ano, devido a pandemia de Coronavírus, a 34ª Bienal de São Paulo: Faz escuro mas eu canto, foi aberta ao público entre setembro e dezembro de 2021, exposição que ficou marcada pela questão ecológica e pela presença de povos originários.[2] A crise sanitária da Covid não apenas deixou evidente, como parece ter aprofundado a desigualdade estabelecida em escala global, a partir do modelo colonial-moderno-extrativista.
No pavilhão da Bienal, Adrián Balseca apresentou duas obras que, de maneiras distintas, tratavam da falência dos projetos imaginados para a América Latina, apesar de toda a riqueza —vegetal, mineral, cultural e humana— sobre a qual se assenta o território. Melhor dizendo: projetos pensados na direção contrária a toda essa riqueza, na medida em que, executados em nome de um questionável “progresso”, foram (e são) decisivos para destruir ou espoliar os recursos de maneira predatória, criando uma paisagem desoladora de miséria e monocultura.
Os atuais territórios do Brasil e do Equador (onde nasceu o artista) não fazem fronteira, mas pode-se dizer que os dois países mantêm uma profunda ligação, tanto por serem atravessados pela Floresta Amazônica,[3] quanto pela “tradição” da colonização eeuuropeia.[4] Balseca mobiliza também, ainda que de maneira sutil, outra instituição eminentemente colonial: o museu (e a própria arte). Em Abya Yala, monocultura não faz referência apenas a uma paisagem monótona, como plantações de soja ou trigo, mas também à destruição sistemática das culturas não brancas.
Uma das obras, BadYear (2020-2021), parodia o nome da estadunidense GoodYear, fundada em 1898 e especializada na extração e no processamento de borracha para manufatura de pneus e outros produtos congêneres.[5] Mas não se trata de uma simples crítica àquela empresa: tal qual fragmentos arqueológicos, os quarenta objetos de borracha natural trazem à tona a memória ao mesmo tempo saudosa e amarga da época do boom extrativista do látex na região amazônica. Saudosa porque havia uma promessa de enriquecimento, “modernização” de um lugar considerado atrasado; amarga porque a depredação natural e humana foi enorme. O “progresso” virou miragem, uma vez mais. E assim, o “ano ruim” de Balseca parece sintetizar a fórmula da “dialética da dependência” latino-americana, caracterizada por “períodos passageiros de crescimento aparente [que] encobrem um processo de empobrecimento contínuo”, para citar as palavras do pesquisador argentino Horacio Machado Aráoz.[6]
Estampados com grafismos que criam uma ambiguidade entre as ranhuras dos pneus e os desenhos indígenas, os fragmentos em tons de ocre na parede branca formam um arranjo que lembra a instalação num museu etnológico, instituição prestigiosa que tem como missão colecionar, preservar e exibir objetos de diversas culturas (não ocidentais), normalmente retirados de contexto, quase como se fossem troféus de guerra.
A associação entre museus, guerras e o ciclo econômico da borracha pode parecer exagerada, mas Balseca entrelaça com precisão todos esses aspectos numa mesma obra. Instituições museológicas que colecionam artefatos — cuja expografia o artista mimetiza — normalmente silenciam a profunda violência que constitui a história das populações colonizadas; a extração de borracha na Amazônia peruana, em 1910, resultou em um dos primeiros usos da figura jurídica do “crime contra a humanidade”, no contexto de um relatório sobre as condições locais de trabalho.[7] Assim, em BadYear, testemunhos de um verdadeiro holocausto são expostos como “belos objetos” na parede asséptica — o título da obra, no entanto, não silencia as contradições deste “passado”.

Em 1972, a exemplo de outros países do continente, o Equador sofreu um golpe militar que derrubou a constituição do país e alçou um general, Guillermo Rodríguez Lara, ao poder. O ditador lançou o Andino, o primeiro carro produzido no Equador, uma parceria da empresa local Aymesa e da General Motors, sediada nos Estados Unidos. No ano seguinte, segundo o cineasta brasileiro João Moreira Salles,
Em 6 de outubro de 1973, dia do feriado judaico de Yom Kippur, o Egito e a Síria lançaram uma campanha militar contra Israel. Seis dias depois, o presidente norte-americano Richard Nixon providenciou o fornecimento de armas para o aliado agredido. Em resposta, os países árabes anunciaram um embargo petrolífero contra os Estados Unidos, o Japão e alguns países da Europa Ocidental. Em poucos meses o preço do barril passou de 3 dólares para 12, um salto de 400%. O mundo entrou em recessão.[8]
O segundo trabalho de Adrián Balseca apresentado no pavilhão da Bienal foi Medio Camino (2014), um vídeo de 16 minutos, que se inicia com a imagem de um estacionamento precário, num dia nublado e cinzento — nada que se assemelhe ao estereótipo dos trópicos, quente, colorido, festivo. Um carro branco, de aparência robusta, se eleva do chão: é justamente o Andino, cujo projeto buscava desenvolver automóveis de baixo custo nos países “em desenvolvimento” nos início dos anos 1970. Acontece que o eufemismo usado no lugar de “subdesenvolvido”, ou o mais rigoroso “espoliado” é uma promessa impossível de se cumprir, afinal, nas palavras do uruguaio Eduardo Galeano, “A divisão internacional do trabalho significa que alguns países se especializam em ganhar e outros em perder”. O projeto fracassou.
No vídeo, um homem retira o tanque de combustível do Andino e em seguida solda uma haste de metal no para-choque. Com o tanque amarrado no capô, se inicia a saga de Medio Camino: Balseca fará uma longa viagem entre Quito e Cuenca contando apenas com a generosidade de quem encontra na estrada. Impresso numa placa, o nome da borracharia de onde sai uma caminhonete rebocando o Andino, é Seis de dezembro, data da fundação da atual capital do Equador pelos espanhóis, em 1534.
Menos de 450 km separam as cidades de Quito e Cuenca, mas o trajeto do carro, que já não funcionava, levou seis dias — aliás, não há como não pensar na dificuldade que a cordilheira dos Andes equatorianos impõe ao próprio veículo, mesmo se funcionasse. A geografia do lugar estabelece uma contradição fundamental, sendo naturalmente inóspita ao transporte rodoviário baseado no petróleo, a mais importante commodity produzida pelo Equador.
Diante da impossibilidade do Andino se mover pelos Andes, diversas pessoas rebocam o carro, em imagens documentais que mostram tanto o desalento da região, durante séculos explorada, como também sua resiliência. Não havia um roteiro estabelecido e foram caminhoneiros, motoristas de trator, famílias de viajantes e até um homem com seu cavalo que ajudaram no trajeto. Nas palavras do artista, “ao ver este carro dos anos 1970 encalhado, enferrujado e bastante velho, as pessoas sabiam imediatamente que estava quebrado. Foi impressionante ver que, através de uma conexão afetiva, as pessoas teceram uma rede de solidariedade na estrada”.
Finalmente o Andino é deixado na porta do Museo Municipal de Arte Moderno de Cuenca, em frente a uma praça com árvores e palmeiras bem cuidadas. A fachada do museu estabelece um estranho diálogo com o carro: formas geométricas, ângulos retos, a superfície branca, antiga e a placa de metal parecem sugerir que a modernidade — ou o desejo de modernização — envelheceu na América Latina; o Andino virou peça de museu. Assim como a promessa desenvolvimentista para o país petroleiro, que vê seus recursos desviados para atender aos interesses internacionais. Juntas, as duas obras trazem algo de melancólico e apontam para a ambivalência das instituições ocidentais, como o museu etnográfico (BadYear) e o museu de arte moderna (Medio Camino), que são parte constitutiva do projeto de expansão e conquista.
Em São Paulo, além dos projetos modernos e/ou de modernização, como o pavilhão da Bienal de Oscar Niemeyer, há outros imóveis históricos marcadamente coloniais. Entre eles está a Casa do Sertanista, construída em meados do século XVII, em que Balseca apresentou a exposição PLANTASIA OIL COMPANY (2021), que trazia uma rampa para troca de óleo, plantas amazônicas cultivadas nela e em latas enferrujadas de indústrias petroleiras, além de uma série de fotografias documentais sobre a destruição da floresta. Segundo o coletivo Rewilding,
Despojados de uma estética modernista, ao transitar entre a utopia e a distopia, os jardins [...] de Adrián Balseca apresentam a possibilidade de um lugar alternativo: uma heterotopia para se viver num mundo em crise.[9]
Entrelaçando dois espaços altamente simbólicos — o Pavilhão modernista e a antiga residência colonial —, o artista parece encenar uma certa desolação tipicamente latino-americana, atestando que modernidade e colonialidade são duas faces da mesma moeda.[10] Os fragmentos de borracha de uma “antiga civilização”, os museus, o veículo rebocado e as latas envelhecidas criam uma aura de abandono e decadência.
As plantas, no entanto, insistem em crescer naquilo que antes continha petróleo; as pessoas generosamente carregaram o Andino, deixando patente que nenhum “progresso” poderá vir de fora. Em outras palavras, para além da desolação, o trabalho de Adrián Balseca sugere que os problemas políticos, sociais, econômicos e até epistemológicos da América Latina devem ser encarados desde dentro, levando em conta toda a riqueza de saberes e práticas locais que resistem, florescem. Mesmo em terra arrasada.
Notas
[1] “A desordem do progresso”, prefácio à edição brasileira de ARÁOZ, Horacio Machado. Mineração, genealogia do desastre. O extrativismo na América como origem da modernidade. São Paulo: Elefante, 2020.
[2] A exposição foi concebida por Jacopo Crivelli Visconti, curador geral, Paulo Miyada, curador-adjunto, Carla Zaccagnini, Francesco Stocci e Ruth Estévez, curadores convidados, e Ana Roman, curadora assistente. A 34ª Bienal também estabeleceu parcerias com instituições locais, como o Museu de Arte Moderna, o Museu Afro Brasil (entre outras) e a Casa Sertanista/Museu da Cidade, que apresentou uma exposição individual de Balseca.
[3] O bioma tem mais de seis milhões de km² de extensão e abarca outros sete países: Bolívia, Colômbia, Guiana, Guiana Francesa, Peru, Suriname e Venezuela.
[4] A expressão é de Walter Porto-Gonçalves, que explica em nota: “Permita-me o leitor o neologismo eeuurocentrismo, por ele proporcionar que, em uma mesma palavra, se junte ‘EEUU’, uma das siglas possíveis para Estados Unidos, às demais potências que, em algum momento desde o século XVI, hegemonizaram o mundo a partir do Atlântico Norte (primeiro Portugal e Espanha; a seguir, a Inglaterra; depois os EEUU)”. In ARÁOZ, Horacio Machado, op. cit., p. 11.
[5] A empresa leva o nome do “inventor” da técnica de vulcanização, Charles N. Goodyear, que impede a degradação biológica da borracha natural, cuja patente lhe foi concedida em 1844. Antes dele, populações indígenas tratavam o látex com o uso da fumaça, a fim de transformá-lo em borracha de alta durabilidade. A estes povos, salvo engano, jamais foi concedida uma patente atestando a criação de novas tecnologias.
[6] ARÁOZ, Horacio Machado, op. cit., p. 28.
[7] O relatório foi escrito pelo diplomata irlandês Roger Casement (1864-1916), enviado especialmente para investigar denúncias de maus tratos. Encontrou assassinatos, estupros, mutilações e trabalho escravo sistêmico. A este respeito, ver BOLFARINE, Mariana; IZARRA, Laura; MITCHELL, Angus (orgs.). Diário da Amazônia de Roger Casement. São Paulo: Edusp, 2016 e GOODMAN, Jordan. The Devil and Mr Casement: A Crime Against Humanity. Londres: Verso, 2009.
[8] A descrição está na quarta parte de uma série de reportagens intitulada Arrabalde, que traz reflexões sobre ecossistemas, silvicultura, desmatamento, o passado e o futuro da Amazônia, publicada na revista Piauí. Disponível em https://piaui.folha.uol.com.br/arrabalde/.
[9] Fazem parte do coletivo Sara Garzón, Ameli Klein e Sabina Oroshi. Ensaio disponível em https://www.collectiverewilding.com/plantasio-oil-co.
[10] Como demonstraram teoricamente os estudiosos do grupo latino-americano Modernidade/Colonialidade e outros(as) pensadores(as) indígenas e afro-diaspóricos(as), antes e depois deles.