Ano XXI , n. 67, setembro de 2023
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Um corte sem sulcos, com sangue de mentira. Sobre o trabalho de Leandro Muniz e Renato Pera
Sou genial sob todos os pontos de vista,
Inclusive de perfil
A poesia é uma mentira, mora.
Pelo menos me tira da verdade relativa
E ativa a circulação consanguínea
— Ana Cristina Cesar, 1968
Uma lâmina, assim como a personagem da poesia, é genial sob muitos pontos de vista (inclusive de perfil). Ela produz cortes, ou cortes em potencial, mas também reflete e duplica os objetos em sua superfície polida. Em termos simbólicos, corte é um desvio que recusa noções como progresso, trajetória, evolução. Nesse movimento de quebra, os objetos não são exatamente o que parecem, mas tampouco guardam algum segredo ou alguma verdade oculta.
Assim opera Lâmina, ensaio visual dos artistas (-etc)[1] Leandro Muniz e Renato Pera, criando rebatimentos e uma ligeira mudança de sentido aos trabalhos, na medida em que suas imagens habitam o mesmo espaço, às vezes sobrepostas. Como no poema, há um segundo corte: a quebra de expectativa sobre a (suposta) genialidade dos artistas e a transcendência da arte. É mentira, mas pelo menos “ativa a circulação consanguínea” — ainda mais porque os trabalhos não ocupam o espaço de um museu ou uma galeria.
Na primeira imagem, a superfície magenta qualifica o espaço da página (fig.) e reflete a silhueta do fotógrafo, como um fantasma escuro. O papel metálico dá ênfase às imperfeições da parede sobre a qual está colado e à materialidade da “figura”, fig, que se inscreve cortando as letras com estilete (e provocando pequenos sulcos na pintura branca). Seriam as imperfeições da superfície e os cortes do papel a “figura” anunciada? Na página seguinte, zoom out: pode-se ver a parede completa, com porta e vitrô, além da quebra na palavra, figur. Apesar da completude do espaço, não há nada a que figur possa servir de ilustração, a não ser o caráter fantasmagórico das imagens, muitas vezes dependentes de um discurso. Mas o discurso está ausente. Os papéis, que transformaram uma superfície em imagem, refletem a luz, mas são opacos. Estranhamente, figur não figura nada além de si mesma.


Ainda com a primeira imagem — fig — fazendo as vezes de fundo, na terceira página há um varal de tecido estampado que acolhe duas outras imagens em preto e branco. Em seguida, zoom-in no mesmo varal, em que se vê que a imagem monocromática é uma fotografia de laboratório, e mostra em detalhes a trama do tecido branco com pequenos corações. Ao lado, outro fragmento do mesmo tecido se sobrepõe, com duas imagens retangulares e um corte, na borda esquerda, que foi enviado para análise.
Nos três casos, o tecido não funciona como um simples anteparo, ou seja, não se trata de “acrílica sobre tela de algodão”, embora a descrição esteja correta (exceto no caso de duas fotografias “sobre tela”). Os varais pendurados no interior de um espaço com paredes brancas e chão de cimento mantêm um diálogo de superfície — o que não quer dizer superficial —, como se o cerne do trabalho fosse, paradoxalmente, sua casca. Ou sua imagem.
Mais uma vez, zoom-in, e vê-se de perto a fotografia do tecido recortado, um fragmento do retângulo cinza feito de pinceladas bem marcadas e, sobreposta a ela, pequenas pedrinhas industriais imitam o fenômeno do lens flare, que ocorre quando a luz incide de maneira oblíqua numa lente, criando manchas arredondadas ou em forma de estrela. O desenho em retícula inviabiliza o aspecto suave e quase desmaterializado do flare, tornando-se um divertido simulacro: trata-se da fotografia de uma composição reticular que, por sua vez, imita um efeito fotográfico.

O flare servirá de fundo para a imagem de uma boca com dentes de vampiro e outra, que mostra, em três-quartos, um crânio pintado. Nenhuma das obras tem o rigor mimético com o qual se pretende transcender a realidade, atitude tão duradoura quanto arrogante no âmbito da arte ocidental. Em outras palavras, nada é transcendente em Lâmina.
A caveira rabiscada ressoa a cultura pop e faz referência à história da arte, mas é um objeto que já perdeu a sisudez da reflexão sobre a vida e a morte. Ela e boca carnuda são apresentadas de maneira quase insolente, como se fossem tão “geniais” quanto aquela do artista-celebridade-europeu e seus diamantes. Ou as imagens hollywoodianas das atrizes femme-fatale, de batom vermelho. A boca de vampiro está ali aberta e estática, algo entre o bem-humorado e o sinistro. Mas, apesar de serem pontiagudos e portanto ameaçadores, os dentes parecem um pouco podres, carcomidos. Nenhuma língua; dentro da boca o breu.

Que dentadas tão pragmáticas
Moscas não existem.
[…]
Que que que sem inteiro.
Acintosos passos em direção a outros passos
De grau em degrau,
relativos nos engolimos como sopa.
— Ana Cristina Cesar, 1969
A lâmina que nomeia o ensaio visual de Leandro Muniz e Renato Pera corta mas não produz sulcos, uma vez que o significado das imagens fica em suspenso, como uma promessa que não se realiza. Na sétima página, “azulejos” estão na parede, mas não são nem azulejos nem trompe-l’oeil. Além de “estamparem” a parede fotografada, a retícula (torta) também está numa camiseta, feita de papel resistente, apesar da aparência frágil. Poderia ser uma estampa, como aquela dos tecidos (que são tecidos). Mas como não lembrar da caveira, da boca ou do efeito óptico do flare, todos eles ligeiramente irônicos? Talvez todos os trabalhos deste ensaio deveriam ser descritos entre aspas.
Não sou idêntica a mim mesmo
sou e não sou ao mesmo tempo, no mesmo lugar e sob o mesmo ponto-de-vista
Não sou divina, não tenho causa
Não tenho razão de ser nem finalidade própria:
Sou a própria lógica circundante
— Ana Cristina Cesar, 1969
Sobre a imagem da parede preenchida de “azulejos”, há uma pintura algo misteriosa, de duas máscaras pretas sobre fundos pretos de diferentes qualidades. Elas parecem rir com (ou do) espectador, olhando (sem olhos) para ele.



Em Quando o sol aqui não mais brilhar: a falência da negritude, a artista Castiel Vitorino Brasileiro propõe uma associação generosa e potencialmente infinita do escuro das peles — racializadas pela modernidade/colonialidade — e muitos dos grandes mistérios do mundo em que vivemos: a escuridão do fundo dos oceanos, das galáxias e dos buracos negros, a transfiguração da matéria no breu da terra. Talvez as Máscaras anunciem com alegria todo o mistério que não será jamais desvendado pela taxonomia ocidental, já que não se trata de poder, mas de liberdade.
Em vista disso, [eu, Castiel] pergunto a você, uma pessoa dita negra: se amanhã pousar na lua, o que dirá àquela rocha sobre você? […] Se um dia voltares desta viagem que fez à lua, o que imaginas dizer às pessoas escuras terráqueas que não a certeza de que nossa escuridão pertence ao universo e não à modernidade?[2]
A escuridão também preenche todo o fundo das cabeças, que fecham este ensaio visual. Trata-se de imagens da cabeça de um dos artistas que gira e explode em jorros de “sangue”, como um chafariz, apesar de serem estáticas. A descrição pode soar macabra, mas os efeitos toscos da cabeça-casca resulta bem-humorado, nonsense. É o artista explodindo, mas também uma imagem virtual que subverte o pesar da morte, o absurdo de tanto sangue — nesse caso, deliberadamente falso. Atrás dele, um fundo preto; negrume cósmico, quem sabe.
Lâmina. Lâminas que rebatem mas não cortam, objetos que não mimetizam a natureza, mas brincam de mímica, camisetas duras, figuras que não figuram nada. Os objetos, as imagens (e as imagens dos objetos) parecem suspender, provisoriamente, nosso estar no mundo. Mas os objetos pouco se importam, estão mais interessados em seus jogos. Assim como o resto do universo.

Notas
[1] BASBAUM, Ricardo. Manual do artista-etc. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2013. Na página 167: “Quando um artista é artista em tempo integral, nós o chamaremos de ‘artistaartista’; quando o artista questiona a natureza e a função de seu papel como artista, escreveremos ‘artista-etc’. (de modo que poderemos imaginar diversas categorias: artista-curador, artista-escritor, artista-ativista, artista-produtor, artista-agenciador, artista-teórico, artista-terapeuta, artista-professor, artista-químico etc)”.
[2] BRASILEIRO, Castiel Vitorino. Quando o sol aqui não mais brilhar: a falência da negritude. SãoPaulo: n-1/hedra, 2022, pp. 26-7.
Fazem parte do ensaio visual os seguintes trabalhos (em ordem de aparição):
Renato Pera, Série Espelhados (Figur), 2019, papel metalizado rosa colado sobre parede, 9 m², Subsolo, Campinas, SP.
Leandro Muniz e Renato Pera, Zoom in - Zoom out (da série Varais), 2019-22, impressão por sublimação, tinta acrílica e tecido, 140 x 200 cm. Foto: Filipe Berndt.
Renato Pera, Série Brilhos, 2022, miçangas de plástico sobre placa de acrílico, prateleira de resina, 66 x 48,5 x 13,6 cm. Foto: Eduardo Ortega/ Fortes D’Aloia & Gabriel.
Renato Pera, Boca de vampiro, 2020, imagem digital, dimensões variáveis. Colaboração: Bruno Alves e Célia Saito.
Renato Pera, Caveira, 2018, acrílica, giz de cera, giz oleoso e lápis de cor sobre fibra de vidro, 18 x 15 x 18 cm. Foto: Julia Thompson.
Leandro Muniz, Azulejo, 2022, tinta acrílica sobre parede, dimensões variáveis. Foto: Fernando Pereira.
Leandro Muniz, Camiseta (da série Cascas), 2019, papietagem, guache, acrílica, cabide, 60 x 50 x 15 cm. Foto: Julia Thompson.
Leandro Muniz, Máscaras, 2021-22, acrílica, óleo, nanquim, carvão e bastão oleoso sobre tela, 70 x 70 cm. Foto: Filipe Berndt.
Renato Pera, Série Cabeças, 2021, still de vídeo. Colaboração: Caio Fazolin.