Mariana Leme
exposições 
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Trânsito-tecido
Galpão 556, São Paulo
27 de maio a 5 de agosto de 2023  

Artistas: Alice Yura, Aline Motta, Anna Guerra, Bárbara Milano e Nazaré Soares, Cecília Lima, Élle de Bernardini, Eva Castiel, Fabia Escobar, Flora Rebollo, Glicéria Tupinambá e Fernanda Liberti, Patricia Baik, Luara Macari, Luiza Caldari, Neuza Petti, Nita Monteiro, Taly Cohen e Sofia Saleme


Fotos: Filipe Berndt

Trânsito-tecido, ou habitar o mundo é estar em movimento

Reunindo artistas de diversas gerações e regiões do país, a exposição Trânsito-tecido tem como questão central o movimento, físico e metafórico. São artistas que, em seus trabalhos, tratam do resgate da memória — pessoal e coletiva —, da construção de identidades e também dos lugares, quase sempre instáveis, que os seres ocupam no mundo.

Tecido diz respeito ao material com o qual são feitas algumasdas obras, mas também às tramas construídas ao longo de gerações: tecido é maleável e resiliente, feito a partir da junção de muitos fios ou fragmentos. Também remete à mitologia ocidental que, desde o século 19, passou a associar o trabalhodas mulheres ao artesanato — ideologia misógina e frequentemente racista — que vem sendo ressignificada nos últimos anos.

Assim, tal qual a aranha de Louise Bourgeois que refaz pacientemente seus fios rompidos, a arte contemporânea pode ser um importante espaço de reparação e da construção de imaginários renovados.

Alice Yura apresenta uma fotoperformance em que se vê seu próprio corpo em movimento, numa paisagem cintilante. São lampejos, quem sabe, de histórias possíveis, em processo, nunca acabadas. Cecília Lima também trata do movimento, e de seu corpo que se desloca pelas estradas que cortam o Brasil. Nesse trânsito, a artista desenha os veículos que levam produtos sem cessar, e os registros são quase notações de uma dança, cujos traços registram o movimento do automóvel.

Uma outra espécie de dança está no trabalho de Aline Motta, uma quilt bordada em homenagem a Oxum, rainha das águas doces, dos rios e cachoeiras. Na língua yorubá, Omi Tutu significa “água fresca”, e o tecido leve se movimenta no ar. Ao seu lado, Bárbara Milano e Nazaré Soares mostram um objeto afetivo, feito com rede de pesca e dezenas de bonecas abayomi, que, também em língua yorubá, significa “encontro precioso” e nomeia a obra. Numa referência à viagem transatlântica de africanos e africanas que foram sequestrados de suas terras, as pequenas bonecas lembram — e honram — histórias de resistência e reafirmam o desejo de inventar um mundo baseado em critérios inteiramente diferentes.

As aquarelas de Neuza Petti lembram territórios vistos de cima, cujas fronteiras são permeáveis, e uma xilogravura sugere caminhos que, sobrepostos, se transformam mutuamente. Anna Guerra cria pinturas com tinta a óleo, cera de abelha e tecido rasgado, um tributo às festas populares marcadas pela alegria da música e das danças coletivas, que quase sempre têm um sentido marcadamente político. Ao seu lado, está o vídeo de Glicéria Tupinambá e Fernanda Liberti, que também registra uma dança: Glicéria e seu filho, Eruthawã Tupinambá, vestem o tradicional manto de seu povo, cujos exemplares históricos também foram sequestrados e hoje se encontram em instituições europeias — mas a artista trouxe de volta a própria essência do manto, sua sabedoria ancestral e seu movimento. A dança, nesse caso, representa o desmanche da concepção colonial, profundamente limitada e violenta, que via os mantos, e toda uma cultura, como se fossem objetos estéticos.

O óleo nas monotipias de Luara Macari impregnaram o papel nos quais foi depositado, sugerindo um movimento contínuo do qual não se sai incólume. A princípio aplicado em vidro, o pigmento foi deslocado, alterando não apenas as característicasda imagem, mas do próprio suporte. Taly Cohen apresenta obras com trançados de rede de proteção, fitas, tecidos e fragmentos de madeira, em parceria com o projeto Cerzindo, que acolhe imigrantes e pessoas emsituação de refúgio na cidade de São Paulo. O tecido, nesse caso, é a matéria-prima para o fortalecimento de laços e a criação de novas histórias de vida das pessoas que, assim como os avós da artista, se viram obrigados a deixar os lugares de origem. Num sentido semelhante, Eva Castiel imagina fronteiras-paisagens que são formadas por muitas camadas e materiais: encáustica, fotografia e papéis recortados que lembram grades, mas são visivelmente frágeis. A fronteira, aparato rígido de controle, parece prestes a se desmanchar.

Talvez seja possível dizer que a própria linguagem é uma espécie de fronteira, ainda que movediça, que pretende circunscrever um número limitado de sentidos compartilhados em uma dada comunidade. Élle de Bernardini inventa um vocabulário novo, e o inscreve em pedaços de couro dourados, cujos significados permanecem em aberto; misteriosos caracteres na superfície cintilante que cobre aquilo que um dia foi pele. Pele: tecido mole que, em outro trabalho, se faz com meias coloridas e sugere que o corpo — simbólica e materialmente — é muito mais maleável que a linguagem que busca defini-lo. O corpo e suas histórias são impermanentes, como na obra de Sofia Saleme, em que uma imagem de contornos fluidos está impressa em cetim, cuja forma se molda no ar. A leveza do tecido parece se fundir com a imprecisão do desenho, e seu significado provisório depende sempre de quem observa.

Patrícia Baik representa em pintura o parélio, fenômeno óptico que forma pontos luminosos ao redor do sol, e nos convida aimaginar — justamente a partir da imagem que fixa este efeito diáfano — a complexidade do universo em que estamos inseridos. Em outra obra, uma estrela explode e, ao mesmo tempo, permanece. Vidas não humanas, uma explosão de cor e a sugestão de voltas ao mundo em movimento espiralar estão nas obras de Flora Rebollo. Camadas de tinta, batom e óleo criam microcosmos que, embora diminutos, parecem estar também prestes a explodir, apontando para um futuro iminente que é muito maior do que aquilo que se vê.

Outra quilt presente na exposição, de Nita Monteiro, traz uma série de bordados sugerindo paisagens e gravuras em metal queretratam as fases da lua, bem como uma série de objetos costurados, como cacos de cerâmica e tufos de lã. Mais uma vez, aquilo que nos circunda é muito maior do que se pode apreender, e está sempre em movimento. Cacos cerâmicos e fragmentos demadeira se juntam no trabalho de Fábia Escobar, formando uma composição possível dentre muitas outras. A princípio descartáveis (e descartados), os fragmentos carregam em si o potencial de ressignificação deles mesmos, o que só é possível a partir do encontro. Por fim, uma espécie de máscara mole de Luiza Caldari parece acompanhar o espectador de longe, como se fosse cúmplice de seu trânsito e das relações estabelecidas no percurso.

As alianças tecidas podem ser provisórias, conflituosas, benéficas, duradouras ou ambíguas. Mas todas elas guardam em si o princípio da transformação, do qual nenhuma vida — humana ou não humana — sai ilesa. E, num sentido cósmico, nem mesmo a morte física dos seres é capaz de impedir o movimento, sempre em trânsito, em trama.