Mariana Leme
traduções
<
<<


Todos os demônios estão aqui: como a história visual da Revolução Haitiana falseia o sofrimento negro e sua morte
Marlene L. Daut

“All the Devils Are Here How the visual history of the Haitian Revolution misrepresents Black suffering and death” foi publicado originalmente em Lapham’s Quartely, em 14 de outubro de 2020.
Tradução feita em parceria com Marcos Vinícius Lustosa Queirós, publicada na revista Arte e Ensaios, UFRJ, vol. 28, nº 43, 2022.  


Durante a Revolução Haitiana, assim como depois dela, as imagens que mais circularam a respeito desse violento conflito de 13 anos, que transformou a francesa São Domingos em Haiti independente, retratam pessoas negras matando pessoas brancas. O livro de 1805 An historical account of the Black Empire of Hayti [Uma história do Império Negro do Hayti], de Marcus Rainsford − um oficial do Exército que havia servido em São Domingos durante a ocupação britânica da ilha − inclui uma imagem significativa desse gênero frequentemente reproduzida: revolucionários negros enforcando soldados brancos, na encosta de um morro. Essa violência negra contra brancos é descrita nas seguintes palavras: “Vingança do Exército negro devida às crueldades praticadas pelos franceses” (Rainsford, 1905, p. 336) (O livro traz também um retrato, hoje icônico, de Toussaint Louverture).

O relato de Rainsford, assim como a legenda, é genericamente favorável à Revolução e à causa de seus líderes: erradicar para sempre a escravidão na ilha. Outras ilustrações menos conhecidas desse volume corroboram tal perspectiva, ao oferecer imagens gráficas da violência praticada pelo Exército francês contra os revolucionários. Uma dessas gravuras mostra cães de caça cubanos − que o Exército francês ostensivamente treinava para “comer os pretos” − atacando uma mãe negra aterrorizada e sua criança; outra imagem ilustra os infames afogamentos perpetrados pelos franceses em suas tentativas, como afirma a legenda, de “exter-minar o Exército negro”.

Rainsford (1905, p. 326-327) descreveu a operação genocida que os franceses implementaram de 1802 a 1803 contra os revolucionários negros, nos seguintes e implacáveis termos:

O governo [francês] do período [...] assumiu a feição mais sanguinária e terrível que se pode conceber entre os povos civilizados [...]. Na tenta-tiva de desarmar as tropas negras [...] os mais bárbaros métodos foram praticados, cargas [humanas] de navios foram recolhidas e sufocadas nos porões. Em uma ocasião, seiscentos foram cercados e, na tentativa de resistir, foram massacrados no local; tais atrocidades diariamente se sucediam nas proximidades do Cabo Francês, cujo ar tornou-se pestilento pela putrefação dos corpos.

Embora os britânicos estivessem em guerra com a França, a compaixão do oficial pelo completo desespero dos revolucionários haitianos era incomum na época. A maioria dos relatos sobre a revolução (Gilroy, Daut, 2020) foi marcada pela simpatia generalizada em relação aos colonizadores brancos e pelo profundo terror no que diz respeito à ideia de que africanos escravizados poderiam matar seus “donos” a fim de se libertar.

Cerca de 75.000 franceses brancos morreram durante a Revolução Haitiana, um contraste dramático com os mais de 350.000 negros que foram assassinados (Sheina, 2003). Era raro, no entanto, que se encontrasse, no século 19, qualquer reconhecimento de tal discrepância. Retratar os negros como perpetradores de violência em vez de suas vítimas − tendência que persiste ainda hoje, em muitas partes do mundo − funcionou como uma distração deliberada das depredações diárias da escravidão e das atrocidades que os colonos franceses e o Exército francês haviam cometido em São Domingos. A história visual da Revolução Haitiana pode nos dizer muito sobre como a insistente representação de pessoas negras em posturas agressivas[1] esconde as histórias de violência branca e desvia nosso olhar da morte negra. Como tais imagens se tornaram o padrão,[2] mesmo em relatos contemporâneos[3] que reconhecem a Revolução Haitiana como o esforço mais contundente da história global para estabelecer a liberdade e a igualdade universalmente, elas contribuíram de maneira decisiva para a construção do estereótipo segundo o qual a fúria negra é a origem da violência social, em vez de uma penosa resposta a ela.

Imediatamente após o início da Revolução Haitiana em agosto de 1791, jornais de todo o mundo publicaram histórias sobre as mortes generalizadas de brancos. “As notícias de São Domingos são horríveis”, relatou o parisiense Le Courrier extraordinaire, em 30 de outubro. “Duzentas plantations em chamas; trezentos brancos massacrados” (apud Bellot, 2019). As narrativas históricas, de maneira geral, caracterizaram a Revolução em termos bastante semelhantes. Nos dois volumes de Saint-Domingue, ou Histoire de ses Révolutions, publicado anonimamente por volta de 1804, ano em que a Revolução terminou, um frontispício reduzia a rebelião de pessoas escravizadas a uma simplória guerra racial: “Revolta generalizada dos negros. Massacre dos brancos”.[4]

Em 1793, quando a capital da colônia, Cabo Francês, foi incendiada por revolucionários negros, pinturas retratando as queimadas contavam histórias sobre a destruição de propriedades, destinadas a produzir maior simpatia pelos edifícios perdidos do que pelos seres humanos que neles haviam sido torturados e escravizados. Dois dos mais famosos exemplos, feitos por J.L. Boquet e Swebach-Desfontaines,[5] trazem o espectro da vingança negra para caracterizar os quase 40 mil residentes franceses da colônia como vítimas inocentes que perderam todos os seus bens materiais, enquanto legiões fugiam da fumaça e das cinzas.

Referências aos incêndios em São Domingos e à proliferação das imagens de pessoas negras matando pessoas brancas foram igualmente onipresentes nas ficções literárias da Revolução. Em 1802, o romancista e dramaturgo francês René Périn publicou uma das primeiras novelas em língua francesa sobre a Revolução Haitiana, L’Incendie du Cap, ou Le règne de Toussaint-Louverture [O incêndio do Cabo, ou O reino de Toussaint Louverture].[6] Visivelmente simpático aos fazendeiros, no prefácio Périn (1802, p. xiv) opinou: “Vou levar-nos até o Centro da cidade do Cabo Francês, para ali procurar as vítimas desse preto atroz, oferecendo um retrato sobre o qual, leitor, você talvez seja forçado a derramar muitas lágrimas!!!”. Foi também em 1802 que o cunhado de Napoleão Bonaparte, o general Charles Leclerc, desembarcou em São Domingos com uma expedição militar que acabou por levar cerca de 80 mil soldados franceses para a ilha. A missão de Leclerc não se deu apenas no sentido de pavimentar o caminho para o restabelecimento da escravidão, que a Assembleia Nacional Francesa havia abolido em 1794, mas de restaurar a autoridade que Bonaparte pensava ter sido usurpada por Toussaint Louverture (Daut, 6 jun. 2020), que se nomeou governador-geral vitalício de São Domingos, em 1801.

A história de Périn jamais se tornaria tão famosa quanto o romance antirrevolucionário Bug-Jargal (1826), de Victor Hugo ou os versos melodramáticos antiescravidão de Alphonse de Lamartine, “Toussaint Louverture” (1850). No entanto, a imagem do frontispício de O incêndio do Cabo permanece como uma das mais reconhecíveis da Revolução.[7]

Esse pouco notável romance circulou o suficiente para que uma cópia chegasse ao Haiti independente, onde caiu nas mãos do futuro rei Henry Christophe (Daut, 14 jul. 2020), então chefe do Exército haitiano. Em 13 de dezembro de 1805, observando que aquela petite brochure havia chegado num navio mercante proveniente dos Estados Unidos, o general Christophe o despachou com uma advertência ao imperador Jacques I (Jean-Jacques Dessalines) (Gaffield, 30 aug. 2018), que havia conduzido o Haiti à independência em 1804:

O conteúdo desta brochura não deixa dúvidas sobre a percepção de nossos inimigos, afinal sequer nos concedem o título de homens, julgando que não somos dignos da liberdade de que gozamos, e que conquistamos com a força das nossas armas, e que nenhum poder na Terra pode jamais usurpar! Mas deixe que eles venham, e lhes darei novas provas (Christophe, 13 dez. 1805).

Apesar de sua obstinada insistência de que a independência era o resultado justo da luta do Haiti para acabar de uma vez por todas com o estado de guerra que caracteriza a escravidão, o general haitiano estava bastante ciente de que relatos como O incêndio do Cabo foram elaborados para que o foco e a atenção se voltassem para as pessoas brancas que morreram durante o conflito.

Histórias do “massacre de brancos” já haviam levado alguns escritores(as) franceses(as) anteriormente simpáticos(as) à causa, como Olympe de Gouges, a argumentar que escravos rebeldes, pessoas livres e libertas na colônia eram igualmente tão cruéis quanto os colonizadores brancos. Pouco depois do início da Revolução Haitiana, Gouges (1792, p. 5) − que seria guilhotinada pelos jacobinos em 1793 − escreveu que os revolucionários paradoxalmente justificavam as ações dos colonos ao imitar suas “mais bárbaras e atrozes torturas”. Aqueles que estavam pouco inclinados a apoiar a Revolução Haitiana, como o escritor François-René de Chateaubriand, filho de um traficante de escravos, caracterizaram os rebeldes negros como indefensáveis pelo sangue derramado e indignos da compaixão do resto do mundo. Em sua obra de 1802, O gênio do cristianismo [Le génie du christianisme], Chateaubriand implorava: “Quem ousaria apoiar a causa dos negros após os crimes que cometeram?”

Lamentando que, durante anos, os haitianos não tiveram a capacidade de se opor a tais afirmações espúrias, em 1814 o barão de Vastey (Gaffield, 4 jun. 2018), ministro mais proeminente do rei Henry Christophe, escreveu em seu famoso panfleto O sistema colonial desvelado [Le système colonial dévoilé]: “Os amigos da escravidão, aqueles eternos inimigos da raça humana, fizeram com que todas as prensas da Europa roncassem durante séculos, a fim de reduzir o homem negro abaixo do bruto” (Vastey, 1814, p. 95). E proclamou: “Agora que temos uma imprensa haitiana, seremos capazes de revelar os crimes dos colonizadores e responder até mesmo às mais absurdas calúnias fabuladas pelo preconceito e pela ganância de nossos opressores” (p. 95).

Em seu discurso amplamente lido, Vastey descreveu meticulosamente de que maneira os colonizadores de São Domingos haviam praticado contra pessoas escravizadas no mundo Atlântico algumas das mais cruéis torturas, que incluíam queimá-las e enterrá-las vivas; cortar-lhes membros, orelhas e outras partes do corpo; fazer-lhes sangrar até a morte e pregar seus corpos em paredes e árvores, além de várias formas de violência sexual, que Vastey (1814, p. 89) definiu como “libertinagem aviltante”. Detalhando os horríveis crimes de um fazendeiro chamado Gallifet, Vastey relatou que “ele estava acostumado a cortar os tendões de seus escravos” e que sua plantation era famosa pelas masmorras, nas quais pessoas escravizadas “morriam prostradas na água, por causa da constipação e da umidade que suprimiam a circulação de seu sangue” (p. 64).

As descrições de Vastey levaram alguns leitores estrangeiros a se perguntar quem ousaria apoiar a causa dos colonizadores brancos depois dos crimes que eles haviam cometido. Uma crítica do panfleto publicada no periódico inglês Anti-Jacobin Review and Magazine em 1818 concluía de forma condenatória: “Ao lermos o tratado que temos diante de nós, duvidamos se estávamos na sociedade dos homens ou de feras selvagens; mas uma breve reflexão convenceu-nos facilmente de que os brutos do campo não poderiam agir como os monstros, na companhia dos quais fomos colocados” (apud Daut, 2017, p. 133). Ainda assim, tais afirmações sobre a barbárie francesa pouco fizeram para desestabilizar o caráter geral da simpatia pelos brancos, abundante na literatura do século 19 e nos trabalhos de arte sobre a Revolução Haitiana.

O governo francês contemporâneo segue a duradoura tradição de caracterizar a França como a paladina dos direitos humanos (Dodman, 31 aug. 2020), em vez de uma das nações mais criminosas do mundo quando se trata de escravidão e colonialismo. Para que essa narrativa se mantenha, entretanto, é preciso ignorar, minimizar e contestar a riqueza de fontes históricas, produzidas tanto no Haiti quanto no mundo Atlântico de maneira geral, testemunhos dos crimes contra a humanidade que os franceses cometeram em São Domingos.

Diversas testemunhas oculares da era revolucionária confirmam o empilhamento de corpos negros em cada canto da colônia. Segundo o relato de Rainsford, esses informantes atestam que, durante o período do general Leclerc e de seu sucessor, general Rochambeau, os militares franceses tentaram perpetrar um genocídio. O próprio Leclerc confirmou essa informação quando escreveu a Napoleão Bonaparte em 7 de outubro de 1802: “[Eis] Aqui a minha opinião sobre esse país: nós devemos destruir todos os negros nas montanhas – homens e mulheres – e poupar somente as crianças menores de doze anos. Nós devemos destruir a metade daqueles nas planícies e não deixar viva qualquer pessoa de cor na colônia que tenha usado uma dragona”.[8]

Essa temerária depravação atingiu diretamente a opinião pública. Em um artigo de 1803 para a Literary Magazine, and American Register, da Philadelphia, um mercador dos EUA narrou que, em novembro de 1802, havia testemunhado “cenas que carregam o mais profundo tom de bárbaras atrocidades”:

Setecentos ou oitocentos negros e pessoas de cor foram capturados nas ruas, nos espaços públicos, em suas próprias casas, e, até o momento, confinados no interior das paredes de uma prisão. Dali eles foram levados às pressas a bordo dos navios nacionais ancorados no porto, de onde foram mergulhados na eternidade (Picture of St. Domingo, 1804, p. 446-450).

Como resultado de toda essa “barbárie premeditada”, o mercador concluiu, “agora as ondas levavam essas vítimas desafortunadas para a costa, flutuando com seus olhos, por assim dizer, voltados para o céu, elas pareciam exigir vingança para o responsável por suas mortes prematuras”.

Até mesmo alguns oficiais militares franceses ficaram horrorizados. O general Jean-Pierre Ramel (o mais novo), que serviu sob o mando de Rochambeau, reconheceu que os franceses estavam massacrando indiscriminadamente pessoas negras, incluindo aqueles que não estavam abertamente rebelados:

Quem são os homens que nós afogamos em São Domingos? Negros que foram capturados como prisioneiros nos campos de batalha? Não; Conspiradores? Muito menos! Ninguém foi condenado por nada: por causa de uma simples suspeita, um relatório, uma palavra equivocada, 200, 400, 800, até 1.500 negros foram jogados no mar. Eu vi acontecer e me queixei dessa situação (apud Daut, 2015, p. 105).

Apesar do número abundante de relatos em primeira mão provando o contrário, pesquisadores contemporâneos às vezes contribuem para uma imagem da São Domingos revolucionária recheada de corpos brancos, repetindo o coro dos reacionários do passado, os quais pintaram a Revolução Haitiana como um momento em que as pessoas negras massacraram brancos de maneira esmagadora, incluindo mulheres grávidas e crianças. Recentemente, usando o termo “genocídio caribenho”, o historiador Philippe Girard (2005, p. 138) concluiu que, entre 1802 e 1804, “com algumas exceções, aqueles que perpetraram o genocídio foram os antigos escravos, enquanto na maioria as vítimas eram antigos senhores de escravos e soldados apoiadores da escravidão”. Essa afirmação contradiz diretamente a história. O único povo que cometeu genocídio na ilha de São Domingo foi o espanhol. E os únicos que tentaram realizá-lo novamente foram os franceses.

Tzvetan Todorov, filósofo, historiador e crítico literário búlgaro-francês, referiu-se à conquista espanhola das Américas (abarcando América do Sul, México e Caribe), nos séculos 16 e 17 – quando 90 por cento da população indígena foi exterminada pelos espanhóis em decorrência de uma combinação fatal entre guerra, remoções e doenças –, como o “maior genocídio da história humana”. No mesmo sentido, as torturantes condições de trabalho na colônia sob o domínio francês, iniciado em 1697, conduziram a assustadoras taxas de mortalidade entre as pessoas escravizadas. Pelo menos 500.000 africanos escravizados morreram devido ao sobretrabalho e à hiperexploração na São Domingos pré-Revolução. Os cerca de 900.000 africanos cativos forçadamente transportados para o lado francês da ilha viviam em média apenas três anos depois da chegada, enquanto a expectativa de vida daqueles nascidos na colônia era de apenas 15 anos. Ferdinand, personagem shakespeariano de A tempestade– peça que por muito tempo foi considerada inspirada no colonialismo europeu no Caribe –, poderia facilmente estar falando de São Domingos quando exclamou “O inferno está vazio/E todos os demônios estão aqui” (Shakespeare, 2014, p. 49).

A crença oposta – de que foram os antigos escravizados em São Domingos os assassinos impiedosos – é somente um resultado parcial do governo pós-revolucionário de Dessalines, quando foi autorizada a expulsão ou a morte de todos os brancos franceses que desejassem permanecer no Haiti independente. Mesmo que essa política tenha resultado na morte de algumas centenas de colonos e soldados brancos ao longo de quatro meses, ela não chegou nem perto de aniquilar a totalidade da população francesa, como demonstra a pesquisa da historiadora Julia Gaffield (18 mar. 2013).

Ainda que a tortura e o assassinato da população negra escravizada fossem devastadoramente comuns sob a escravidão na colônia, constituindo o seu próprio holocausto, e que, durante a Revolução, a quantidade de pessoas negras mortas supera desmedidamente a de fazendeiros brancos e soldados franceses, numerosas imagens insinuam precisamente o oposto: Dessalines levantando a cabeça de um homem branco, um revolucionário negro anônimo fazendo o mesmo. Divorciadas do seu contexto histórico, tais gravuras dificil-mente mostram que o que levou os revolucionários haitianos a usar essa clássica tática de terror foi, na verdade, a exibição mortal da força, implacavelmente usada pelos franceses. Em fevereiro de 1791, o governo francês em São Domingos exibiu em lanças as cabeças de dois homens de cor revolucionários, Vincent Ogé e Jean-Baptiste Chavannes, servindo de aviso para qualquer um que tentasse obter direitos iguais aos dos colonos brancos.

Uma das raras gravuras ilustrando a preponderância do número de mortes de pessoas negras em relação às brancas vem de um livro infantil de 1888, Thérèse à Saint-Domingue, de Armand Fresneau. Contando a história dos Monrémy, família branca que foge da insurreição escrava e deixa para trás sua plantation em chamas, a legenda sob a imagem diz: “O guarda francês foi encarregado de recolher os cadáveres”.[9] Notavelmente, esses corpos eram negros, não brancos. Ainda assim, quando a versão em inglês do livro foi publicada no ano seguinte, essa imagem foi omitida. Por outro lado, preservou-se a gravura representando a angústia da protagonista, enquanto ela foge da Revolução.

Outra história infantil do final do século 19 contém uma imagem expressando o que talvez possa ter sido uma inconsciente simpatia em relação às pessoas negras de São Domingos. Essa gravura de duas crianças chamadas Mika e Dodo chorando por causa da morte da mãe de Mika, ocorrida antes da Revolução, é do conto L’esclave de Saint-Domingue [O escravo de São Domingos], de Michel Möring, de 1860.

A narrativa definitivamente não defende a Revolução Haitiana, e Möring mantém os detalhes de rebelião escrava em segundo plano, preferindo enfatizar a bondade dos personagens principais do conto. Construindo Mika e Dodo como os salvadores de uma família francesa, a narrativa sugere que as pessoas negras somente são dignas de simpatia no contexto revolucionário se elas demonstrarem benevolência e devoção para com os brancos, mesmo que esses sejam os seus antigos senhores.

É preciso atentar para artistas contemporâneos a fim de encontrar o esforço deliberado de representar não somente a tristeza, o sentimento de perda e os pesares cotidianos das pessoas negras escravizadas em São Domingos, mas também o absoluto medo que elas experimentaram durante a Revolução. Bacchus and Ariadne (2004), de Kimathi Donkor, reorienta o olhar sobre a violência branca, ao mesmo tempo em que ressalta o puro terror sentido pelas pessoas negras em São Domingos. Sua representação de uma mulher negra silenciosamente ofegante no horror, enquanto ela testemunha a fúria assassina de um soldado branco francês tentando ferir de baioneta uma criança negra, é um contraste dramático em relação às quase monolíticas representações oitocentistas de revolucionários haitianos atacando mulheres e crianças brancas.

A maioria dos artistas haitianos contemporâneos que pintaram a Revolução focalizou paisagens mais heroicas e comemorativas. Em 1995, Madsen Mompremier apresentou o icônico Dessalines ripping the white from the flag [Dessalines retirando o branco da bandeira]. Cérémonie du Bois-Caïman (1990), de André Normil, é indiscutivelmente uma das mais famosas representações da cerimônia de agosto de 1791 que anunciou o início da Revolução Haitiana.

O reconhecimento de que existiu grande sofrimento ao lado de profundo heroísmo em São Domingos é essencial, porém raro. Isso é o que faz tão extraordinário o Monumento aos Heróis de Vertières. Tendo o nome da famosa batalha que encerrou a Revolução, ele representa os homens e as mulheres caídas na luta de emancipação ao lado daqueles que viveram para ver o Haiti tornar-se livre. O alto preço da independência haitiana é forjado em sete figuras de bronze.

É difícil não notar paralelos entre os esforços de deturpar a Revolução Haitiana e o momento atual, quando protestos contra os assassinatos de homens e mulheres negras pela polícia nos EUA são representados muitas vezes na mídia estadunidense como a perpetuação da violência, em vez de uma oposição a ela. Se as estátuas do Monumento aos Heróis pudessem falar, elas poderiam responder a tais falsificações com as dores e os sofrimentos da escravidão. As expressões sérias nos rostos das figuras em pé, ao mesmo tempo que se sentam eternamente com os mortos − olhos virados para o céu, parecendo implorar mais por simpatia do que por reconhecimento −, fornecem pungente lembrança de que os escravizados não mataram como maníacos. Os senhores de escravos sim.

Notas
[1] Cf. Phiz (Hablot Knight Browne), gravura em metal sem título, in Periwinckle, Paul. The Pressgang. Londres: Thomas Tegg, 1841, n.p. Disponível em: https://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=uc2.ark:/13960/t72v2ns4t&view=1up&seq=611&skin=2021. Acesso em 6 set. 2021.
[2] Cf. artigo “Haitian Revolution: causes, summary & facts”, Encyclopaedia Britannica. Disponível em: https://www.britannica.com/topic/Haitian-Revolution. Acesso em 6 set. 2021.
[3] Cf. Horne, Gerald. Confronting Black Jacobins. The U.S., the Haitian Revolution, and the Origins of the Dominican Republic. New York: NYU Press, 2015 (imagem de capa). Disponível em: https://nyupress.org/9781583675625/confronting-black-jacobins/. Acesso em 6 set. 2021.
[4] Disponível em: https://digital.librarycompany.org/islandora/object/Islandora%3A2721. Acesso em 16 set. 2021.
[5] Boquet, J.L. Vue de l’incendie de la ville du Cap Français, Arrivée le 21 Juin 1793. Vieux style, 1794. Acervo Bibliothèthe nationale de France, Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b6946889b.item#. Acesso em 6 set. 2021. Swebach, Jacques François Joseph. https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b69502977.
[6] Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6112317n.texteImage. Acesso em 6 set. 2021.
[7] Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6112317n/f7.item. Acesso em 24 set. 2021.
[8] Para as cartas de Leclerc no Haiti, cf. https://library.brown.edu/haitihistory/9.html.
[9] Disponível em: https://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=njp.32101071961104&view=1up&seq=179&skin=2021.

Referências
BELLOT, Marina. 1791: La grande révolte des esclaves de Saint-Domingue. RetroNews. Paris, 2019. Disponível em: https://www.retronews.fr/colonies/echo-de-presse/2019/02/21/revolte-des-esclaves-de-saint-domingue. Acesso em 25 nov. 2021.
CHATEAUBRIAND, François-René de. Le génie du christianisme ou Beautés de la religion chrétienne. Paris: Migneret, 1802. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bp-t6k1054578g.image. Acesso em 25 nov. 2021.
CHRISTOPHE, Henry. Manuscrito para Jean-Jacques Dessalines, 13 de dezembro de 1805. Depositado em FCO Historical Collection FOL. F1924 HEN. King’s College, London.
DAUT, Marlene L. The king of Haiti’s dream. How a utopian vision of Black freedom and self-government was undone in a world still in thrall to slavery and racism. Aeon Magazine, 14/7/2020. Disponível em: https://aeon.co/essays/the-king-of-haiti-and-the-dilemmas-of-freedom-in-a-colonised-world. Acesso em 6 set. 2021.
DAUT, Marlene L. The wrongful death of Toussaint Louverture. History Today, v. 70, n. 6, jun. 2020.
DAUT, Marlene. Baron de Vastey and the origins of Black Atlantic Humanism. New York: Palgrave Macmillan, 2017.
DAUT, Marlene. Tropics of Haiti: race and the literary history of the Haitian Revolution in the Atlantic world, 1789-1865. Liverpool: Liverpool University Press, 2015.
DODMAN, Benjamin. Behind sketch of black MP in shackles, a French failure to confront slave legacy. France24, 31 aug. 2020. Disponível em: https://www.france24.com/en/20200831-behind-sketch-of-black-mp-in-shackles-a-french-failure-to-confront-slave-le-gacy. Acesso em 25 nov. 2021.
GAFFIELD, Julia. Meet Haiti’s founding father, whose black revolution was too radical for Thomas Jefferson. The Conversation, 30 aug. 2018. Disponível em: https://theconversation.com/meet-haitis-founding-father-whose-black-revolution-was-too-radical-for-thomas-jefferson-101963. Acesso em 25 nov. 2021.
GAFFIELD, Julia. Haitian writer Baron de Vastey and Black Atlantic Humanism: an interview with Marlene L. Daut. Black Perspectives, Pittsburg, 4 jun. 2018. Disponível em: https://www.aaihs.org/haitian-writer-baron-de-vastey-and-black-atlantic-humanism-an-interview-with--marlene-l-daut/. Acesso em 25 nov. 2021.
GAFFIELD, Julia. 1804 Censu, Gros Morne, Haiti, 18/03/2013. Disponível em: https://haiti-doi.com/2013/03/18/1804-census-gros-morne-haiti/. Acesso em 25 nov. 2021.
GILROY, Paul; DAUT, Marlene L. Transcript: an anthology of Haitian Revolutionary fictions (Age of Slavery). London: University College (podcast), 5 aug. 2020. Disponível em: https://www.ucl.ac.uk/racism-racialisation/transcript-anthology-haitian-revolutionary-fictions-a-ge-slavery. Acesso em 6 set. 2021.
GIRARD, Philippe R. Caribbean genocide: racial war in Haiti, 1802-4. Patterns of Prejudice, v. 39, n. 2, 2005, p. 138-161.
GOUGES, Olympe de. L’Esclavage des noirs, ou l’heureux naufrage, drame en trois actes, en prose. Paris: la veuve Duchesne, la veuve Bailly et les marchands de nouveautés, 1792, p. 5.
PÉRIN, Réné. L’Incendie du Cap, ou Le règne de Toussaint-Louverture. Paris: Librairie Marchand,1802. Disponível em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6112317n/f8.item. Acesso em 6 set. 2021.
“Picture of St. Domingo”. The Literary Magazine and American Register for 1803-4. V. 1. Philadelphia: John Conrad and Co., 1804, p. 446-450.
RAINSFORD, Marcus. An historical account of the Black Empire of Hayti. London: Albion Press, 1905.
SHAKESPEARE, William. A tempestade. Trad. Rafael Raffaelli. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014.
SHEINA, Robert L. Latin America’s wars: the age of the caudillo, 1791-1899. V. 1. London: Brassey’s, 2003.
VASTEY, Pompée-Valentin, baron de. Le système colonial dévoilé. Cap-Henry, 1814. Disponível em https://catalog.hathitrust.org/Record/010944978. Acesso em 24 set. 2021.