Texto publicado no número 2 do volume 11 da Revista Rosa
Suspender o tempo. O prazer e as pinturas de Lia D Castro
Em minha casa, O sono, Cama, A proprietária, Ao descansar. Os títulos das pinturas recentes de Lia D Castro evocam, antes de qualquer coisa, sensações de conforto e prazer. Pinturas, para além dos títulos, são feitas de matéria: acúmulo e justaposição de pigmentos, médiuns e solventes sobre uma superfície. São também — e ao mesmo tempo — imagens e objetos históricos, que muitas vezes atravessam os séculos, extrapolando o contexto original nos quais foram criadas. Por isso, são sempre polissêmicas, capazes de articular visões de mundo de uma dada sociedade, expectativas de quem as observa e nexos culturais mais amplos.
Criadas em 2024, as obras de Castro podem ser classificadas como “naturezas-mortas” e “cenas de gênero”, e nos convidam, num primeiro momento, a refletir sobre uma longa tradição de imagens de temas aparentemente banais: os alimentos e as cenas cotidianas, que retratam pessoas comuns em seus afazeres. Um olhar mais demorado às pinceladas, às composições e ao contexto de sua criação parece indicar que se trata, na verdade, das políticas subjacentes à própria ideia de humanidade. Afinal, antes de se configurarem como abstrações teóricas, o tempo, o ócio e o prazer são fundamentais para a manutenção da vida.

1.
Alguns dos mais antigos afrescos da tradição ocidental hoje conhecida como “natureza-morta” foram encontrados na casa de Julia Felix, uma mulher que viveu na época da erupção do Vesúvio, ano 79 da Era Comum. Há ovos numa travessa, pássaros abatidos, frutas in natura e secas, recipientes de cerâmica, vidro e metal. A grande vasilha transparente contendo uvas, peras e romãs talvez pareça surpreendente ao observador contemporâneo, tanto pela composição que, quase 2 mil anos depois, ainda aguça os sentidos, quanto pela fatura primorosa das diferentes superfícies, sobretudo a do vidro.
Felix mandou inscrever, também em afresco, seu nome na fachada de um complexo arquitetônico com jardins, casas de banho, espaços para refeições e lazer, além de quartos para aluguel,[1] adquirido por ela havia mais de uma década. Ao lado de “Julia Felix” está escrito, em latim, “filha de Spurius”, o que significa que era ilegítima.
Apesar de não haver outros registros conhecidos sobre a história de vida daquela mulher, a breve descrição acima coloca em xeque nada menos que a ideia comum da antiguidade romana como exclusivamente masculina, elitista e bélica e, de maneira geral, sobre as hierarquias de gênero muitas vezes naturalizadas.[2] Felix, que se apresenta publicamente como bastarda, foi uma grande proprietária — título de uma das séries de pinturas de Lia D Castro — e mulher de negócios bem sucedida.
Os afrescos romanos que decoravam suas paredes são provavelmente herdeiros das xenia gregas, espécie de imagens-dádiva oferecidas ao “estrangeiro” ou “hóspede”, das quais restaram apenas relatos escritos. O gênero moderno da natureza-morta, assim nomeado nas línguas latinas, tornou-se autônomo apenas no século XVII. Foi por volta de 1650 que os holandeses cunharam um termo capaz de dar conta da enorme diversidade de pinturas que retratavam animais, hortaliças, flores e outros objetos: stilleven, que daria origem ao inglês still life.
Ao contrário de “morta”, still denota um momento em suspensão, espécie de quietude. E talvez essa seja uma chave interessante para uma primeira aproximação às séries Natureza viva, Um lugar ao sol e A proprietária de Lia D Castro, “arte com a qual nos sentimos tão à vontade, cujos prazeres afiguram-se tão óbvios”, para tomar emprestadas as palavras da grande estudiosa da pintura holandesa do século XVII, Svetlana Alpers.[3]
2.
Ao descansar retrata uma pessoa deitada na cama, de costas para o espectador e coberta com um lençol macio, sensação reforçada pelas pinceladas grossas e sinuosas de brancos, cinzas claros e azuis. O caimento do tecido nas bordas do colchão extrapola o próprio quadro, num movimento de expansão que sugere o acolhimento não só da personagem, mas também de quem a observa. As paredes e o chão do cômodo são preenchidos num mesmo tom de cinza, o que faz com que a cama pareça, levemente, flutuar. O retângulo azul-claro que representa o colchão é rebatido num outro retângulo à direita, que sugere ao mesmo tempo uma janela e uma certa tradição construtiva da pintura, agora desprovida de qualquer “projeto” ou ideia de progresso.[4]
Na verdade, as “quinas” acinzentadas do quarto podem ser aproximadas formalmente daquelas que constroem o espaço destinado a acolher os recipientes e as frutas, no afresco de Pompeia do século I. Se quase dois milênios separam as pinturas, há um sentido de humanidade que as une: o deleite, o repouso, o tempo “em suspensão” e duas das necessidades mais básicas: o alimento de qualidade e o ócio.
“O espaço solitário”, afirma bell hooks,
às vezes é um lugar onde sonhos e visões entram, às vezes é um lugar onde nada acontece. No entanto, é tão necessário para o trabalho ativo quanto a água é necessária para que algo cresça. Essa imobilidade, essa quietude, necessária para o cultivo contínuo de qualquer devoção a uma prática artística — para o trabalho de alguém —, continua sendo algo que as mulheres (independentemente de raça, classe, nacionalidade etc.) lutam para encontrar na própria vida.[5]
Outra pintura, Cama, um lugar ao sol, feita quase toda em tons de cinza, também retrata uma pessoa deitada de costas para o espectador, provavelmente dormindo. Nesse caso, a coberta igualmente macia e feita de pinceladas soltas é escura, assim como a parede à esquerda. À direita, há uma mesa de cabeceira sobre a qual se vê a representação de outra pintura da artista, o retrato de um homem chamado Davi, de quem não se vê o rosto.
Ao contrário da tradição ocidental que muitas vezes reiterou o constrangimento de uma mulher sendo surpreendida pelo olhar masculino — esteja ele presente na cena ou encarnado pelo espectador supostamente masculino, branco, cis-heterossexual —, a pintura de Castro parece transmitir essa sensação de tranquilidade, entre outras coisas, com a construção de uma perspectiva que não se realiza a partir da altura dos olhos humanos. A luz marca o espaço geometricamente, assim como a mesa de Um lugar ao sol, da série Natureza viva.
Repetindo o título que toma emprestado a expressão popular que pode significar tanto um lugar de privilégio quanto uma vida digna, em outra pintura de Um lugar ao sol há duas fatias de melancia, uma mesa azul e uma cadeira de madeira, iluminados de maneira oblíqua. Tanto o quarto quanto a cozinha são lugares modestos, embora confortáveis, e não parecem remeter à ideia de privilégio, como seria o caso de ambientes suntuosamente decorados ou ostentando alimentos caros, luxuosos. A artista parece sugerir que o tempo do devaneio, da contemplação e do descanso, embora tenha se tornado benefício de uma pequena parcela da humanidade, é, na verdade, fundamental — tanto para a existência, quanto para a criação artística. Em outras palavras, aquilo que se realiza como privilégio é na verdade uma necessidade básica.
A série Em minha casa é composta por autorretratos da artista lendo, sentada no sofá azul, nua e em companhia de seu cachorro. A atmosfera também é calma, despreocupada; Castro não mostra nem seu rosto, tampouco o conteúdo de sua leitura — embora em uma delas seja possível ver, transposta para a capa, a imagem de sua pintura A travessia do Rubicão (2022), na qual havia escrito: “quer saber quem eu sou vista minha pele”, frase agora ausente. Castro parece impedir, ou dificultar, interpretações baseadas num conteúdo textual, alheio à obra, como uma narrativa que lhe servisse de legitimação. A pintura, afinal, retrata aquilo mesmo com que se parece: uma mulher, sentada num sofá com seu cachorro, lendo um livro.
Durante muito tempo, argumenta Alpers, os historiadores da arte não foram capazes de compreender a pintura holandesa do século XVII — muito afeita às cenas de gênero e naturezas-mortas, como as de Castro — por estarem utilizando os critérios retóricos do Renascimento italiano, segundo os quais o texto e a transcendência seriam mais importantes que as imagens e o mundo material. “É em função desse ponto de vista”, afirma a autora, “que existe uma longa tradição de obras descritivas menosprezadas. Elas foram consideradas desprovidas de significados (visto que nenhum texto é narrado) ou inferiores por natureza”. E oferece uma interpretação mais ampla para tal incompreensão:
Essa visão estética [que valoriza a narrativa] tem uma base social e cultural. Muitas vezes o primado da mente sobre os sentidos e o dos observadores instruídos sobre os ignorantes tem sido invocado para enaltecer a narração em detrimento de uma arte que apenas deleita os olhos.[6]
Além de valorizar o tempo, a contemplação e o descanso, as obras recentes de Lia D Castro chamam a atenção para os aspectos considerados “banais”, ao mesmo tempo em relação à vida cotidiana e à História da Arte, enquanto disciplina estabelecida. Em O sono, um cachorro deitado sobre os lençóis da cama desfeita (como se alguém estivesse acabado de se levantar) é apenas um cachorro dormindo, envolto em seu próprio corpo. Um exercício de erudição iconográfica não seria apenas inútil, mas também prepotente: qualquer pessoa que já tenha visto um cachorro se deitar tem plena condição de se relacionar com a obra de Castro, independentemente de sua educação formal. Nesse sentido, trata-se de uma pintura que é acolhedora para muito além da cena retratada e dos interiores que recebem tão bem aqueles que ali se instalaram.[7]
3.
Uma arte que seja “apenas” um deleite para os olhos, no entanto, não parece trivial numa ex-colônia como o Brasil, ainda mais se considerarmos os corpos não brancos que foram (e são) levados à exaustão diariamente.[8] O tempo de descanso é vital, e é o tema da série A proprietária, autorretratos da artista dentro de uma piscina azul, tomando sol ao seu lado ou sentada no banco de uma sauna. Mais uma vez, embora o ambiente seja confortável — e, numa sociedade desigual, privilégio de poucos —, não há uma afirmação de superioridade, como se o acesso a bens materiais fizesse da personagem alguém moralmente melhor do que outras pessoas.
Como nas pinturas de interiores, as cenas se estruturam geometricamente e numa paleta reduzida de cores: azuis, cinzas e marrons. A proprietária normalmente está sozinha desfrutando de seu tempo livre; às vezes em companhia do cachorro, a quem acaricia em uma das pinturas. Nesse caso, a borda da piscina cria uma diagonal que “corta” o quadro em duas metades desiguais, o que cria um movimento sutil na composição. O espaço azul, à direita, ocupa mais da metade da tela, e uma das extremidades coincide, em paralelo, com o piso: o fim da piscina é também o fim da pintura, como se a artista sugerisse que seria também inútil buscar uma “mensagem” fora dela — embora qualquer pintura seja passível de interpretações diversas, a depender de quem a observa. Em outras palavras, se a pintura de Castro pode ser chamada de descritiva, assim como as cenas holandesas do século XVII, ela é ao mesmo tempo ensimesmada como o cachorro e acolhedora como o tecido macio; um convite para que o/a espectador/a também desfrute desse tempo de lazer.
Pode-se dizer que o prazer desinteressado, a suspensão do tempo cotidiano e o descanso são a própria matéria das pinturas de gênero e natureza-morta, não apenas no tema, mas na composição com poucos elementos, levemente instáveis. Mas se a pintura holandesa do século XVII pode ser descrita como um “longo domingo”,[9] Lia D Castro parece aproveitar o dia, ao mesmo tempo que declara que o domingo — o ócio, o prazer — não deveria ser exclusividade de ninguém, afinal é a própria matéria da vida.
Notas
- O afresco da fachada e os de outros lugares da casa estão hoje sob a guarda do Museo Archeologico Nazionale di Napoli; o complexo arquitetônico “Praedia di Giulia Felice” está aberto ao público desde 2018.
- Ver, entre outros, Longfellow, Brenda e Swetnam-Burland, Molly (orgs.). Women’s Lives, Women’s Voices: Roman Material Culture and Female Agency in the Bay of Naples. Austin: University of Texas Press, 2021 e D’Ambra, Eve, “Women in the Bay of Naples.” in A Companion to Women in the Ancient World. Nova Jersey: Wiley-Blackwell, 2015. A ideia de supremacia branca ou, para todos os efeitos, de uma hierarquia racial estava longe de ser inventada, embora tenha sido projetada no Império Romano em retrospecto, sobretudo a partir de escavações arqueológicas, na segunda metade do século 18. A esse respeito ver Painter, Nell Irving. The History of White People. Nova York: W.W. Norton, 2010 e a exposição Gods in Color: Polichromy in Antiquity (2020–21), disponível em https://buntegoetter.liebieghaus.de/en/.
- Alpers, Svetlana. A arte de descrever. São Paulo: Edusp, 1999, p. 32. Tradução de Antonio de Pádua Danesi.
- Amaral, Aracy. Projeto Construtivo Brasileiro na Arte (1950–1962). São Paulo: Pinacoteca do Estado, 1977.
- hooks, bell. “Artistas mulheres: o processo criativo” in Carneiro, Amanda; Mesquita, André e Pedrosa, Adriano (orgs.). Histórias das mulheres, histórias feministas: antologia. São Paulo: MASP, 2019, p. 237. Tradução de Ligia Azevedo.
- Alpers, Svetlana, op. cit., p. 31.
- Sobre outros significados do verbo “acolher” na obra de Castro, ver Silva, Denise Ferreira da. “Uma troca sobre justiça: lendo o momento (com/para/a) Lia D Castro.” In Britto, Glaucea Helena de e Rjeille, Isabella (orgs.). Lia D Castro: Em todo e nenhum lugar. São Paulo: MASP, 2024.
- Em novembro de 2024, quando escrevo este texto, uma Proposta de Emenda Constitucional que prevê a proibição da jornada 6x1 — seis dias trabalhados para um de descanso — alcançou grande interesse e debate público no Brasil. O texto foi proposto pela parlamentar Erika Hilton em parceria com Rick Azevedo, do Movimento Vida Além do Trabalho.
- Alpers, Svetlana, op. cit., p. 32.