14 de março - 11 de abril de 2023, Galeria Karla Osório, Brasília
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Simone Fontana Reis: o estranhamento e a floresta, dentro
Numa galeria da capital federal do Brasil, essa ex-colônia nomeada a partir da árvore-tornada-commodity com cor de brasa, está a pintura de outra árvore emblemática, a monumental Samaúma. Ela é feita em tons de verde, ocres e azuis e mostra a base com suas enormes raízes. Ao lado dela, há uma espécie de cipó: mole e enroladiço que (logo descobriremos) é também muitas outras coisas.
Em sua primeira individual, Simone Fontana Reis nos convida a trazer a floresta para dentro, num movimento de afeto e afeição do qual não se sai incólume. A artista parte de sua própria experiência em território amazônico e a transforma em pinturas, desenhos e esculturas. Nelas, a floresta se transforma em gentes, e sugere que a gente humana pode também se transformar, tendo em vista o atual estado de destruição. Floresta que, à ignorância do “povo vestido”, ou raku nawá na língua Hãtxa Kuĩ, poderia parecer um mundo exótico e misterioso, passa a ser incorporada — tornada corpo — como fonte de criação e de vida pulsante.
Há uma pintura em que figura e fundo se transformam mutuamente, e o “vazio” das folhas cria pássaros que, misturados, criam um olho que nos observa atento. Se já não existe a divisão figura/fundo, talvez a artista indique que não há um sujeito autônomo ou mais importante que aquilo que o cerca; Reis parece dissolver também a divisão (ocidental) entre natureza e cultura, uma das “dicotomias infernais da modernidade”, para citar as palavras irônicas do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro.[1] Na mesma pintura, chamada Como surgiram os pássaros, além das folhas verdes e das aves-olho cor-de-rosa, há ainda outra folha, escura, que preenche de sentido o espaço central da tela.
Em Túnel cósmico e Ni Ukemerã, pintura que nomeia a exposição, aquela espécie de cipó mole que estava ao lado da grande árvore engoliu o planeta, como uma serpente mítica. Transformadora. Engoliu Tarsila do Amaral e deu um nó no ovo de Urutu, pintura da artista modernista que se relaciona diretamente com o Manifesto antropófago, lançado naquele mesmo ano de 1928 e inspirado pelo antigo ritual Tupinambá. A jiboia de Reis engoliu também o famoso Abaporu — inclusive o sol — e, quem sabe, as boas intenções dos paulistas de um século atrás, que pretendiam fazer sentido do “Brasil” valendo-se de culturas que lhes pareciam pitorescas.
Diferentemente de Tarsila do Amaral e de outros artistas que se “encantaram” pelos mitos e lendas amazônicas, sem saber o exato significado de “encantamento”, Reis conhece o território, que visita e vivencia há décadas. Nas palavras da jornalista Eliane Brum, “Quando um napë entra na Amazônia, no sentido mais profundo, há que saber que nunca mais caberá no próprio corpo, mas também não será capaz de assumir inteiramente um outro.”[2] Simone-raku nawá-napë já não cabe no próprio corpo; foi transformada pela floresta, engolida pela jiboia que povoa sua obra.
Numa série de desenhos, as cobras interagem com pinturas emolduradas — a ideia de cultura —, engolindo-as também, às vezes fazendo ninhos de ovos. Em Eskaywata Kayaway, nascem membros-jiboia no animal humano e, em outra obra, a grande serpente guarda (literalmente) uma tela dentro de si. Sua pele é toda feita de grafismos sinuosos, o oposto das linhas pretensamente racionais da arquitetura moderna, que se dissolvem em A procura da paisagem perdida - Brasília e no tríptico Grafismo Brasília.
Os grafismos sinuosos também estão presentes em duas pinturas feitas de acrílica e solo antropogênico. Também conhecido como “terra preta”, este é um dos elementos arqueológicos que provam que, durante milhares de anos, a Amazônia foi manejada pelas gentes que ali viveram e vivem. Alguns exemplares de sementes transformaram-se em escultura e se espalham pela galeria. Semente-cultura-floresta-dentro: se, como mostram estudos científicos, a maior e mais diversa floresta do planeta é um imenso jardim, a “divisão infernal” também foi engolida pela jiboia; não passa de um torpor colonial no qual nós, os raku nawá, nascemos submersos. Talvez incorporar a floresta não seja um processo simples. Mas, para terminar com as palavras de Brum, outra mulher napë que decidiu se florestar, “estranhar é preciso. O que não nos provoca estranhamento não nos transforma”. [3]
A artista agradece a Pajé Dua Busê, Ninawa Huni Kuin, Rita Huni Kuin e Renata Leite.
Notas
[1] CASTRO, Eduardo Viveiros de. Metafísicas canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Ubu; n-1, 2018, p. 33.
[2] BRUM, Eliane. Banzeiro òkòtó. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 19. Napë, em língua Yanomami, significa ao mesmo tempo branco, inimigo e estrangeiro.
[3] Idem, p. 5.

