18 de maio a 18 de junho de 2024, Galeria Izabel Pinheiro

As imagens e o humor de Marina Quintanilha
Fixação, seus olhos no retrato
Fixação, minha assombração
Fixação, fantasmas no meu quarto
Fixação, I want to be alone
Em 1984, a banda Kid Abelha lançou Fixação, um hit que trata de uma relação de amor platônica e quase obsessiva. O ponto de vista é de uma presumida mulher — representada pela voz da cantora Paula Toller — e ela se vê constantemente assombrada por imagens: o rosto na TV, um pôster, um retrato. Como se estivesse cansada, ao final do refrão ela diz, em inglês, que deseja estar sozinha.
O ritmo é de um pop bem-humorado e “fixação”, além de dar nome à música, faz parte do vocabulário da fotografia, esse meio tão importante para a multiplicação e difusão de imagens. É também o título da individual de Marina Quintanilha que faz imaginar, entre outras coisas, um descanso merecido.
Na entrada da exposição está a pintura de uma mulher que ajeita seus cabelos em frente ao espelho, mas o enquadramento não mostra seu rosto; o ambiente é preenchido por uma luz amarelo-esverdeada. Em outro lugar, se vê dois pés agigantados, com unhas pintadas de vermelho, que repousam na borda de uma banheira cheia de água. Cogumelos brancos, muito maiores que o tamanho natural, estão dispostos sobre um fundo escuro. Uma mulher de cabelos lisos se contorce sobre a cama, quase como os cogumelos; tecidos e parede cobrem a maior parte da pintura.
Outra mulher descansa num sofá vermelho, de costas para o espectador, com vestido de zebra e os sapatos de salto no chão. Alguém sai da piscina e enxuga o rosto com as mãos. Nas animações em loop, feitas com desenhos de traços rápidos, uma mulher toma banho, outra faz exercícios e uma terceira está deitada numa maca ginecológica, todas acompanhadas de sons aparentemente desconexos, como o do “carro da pamonha” — esse outro indício da cultura pop.
Quem são essas mulheres de quem quase nunca se vê o rosto? Há alguns aspectos que se repetem, como o esmalte vermelho, a pele branca, os cabelos castanhos claros e o cenário presumidamente urbano (ainda que a cidade esteja visualmente ausente). Mas a interpretação das “histórias” permanece em aberto.
Na verdade, as pinturas fixam mais um indício que um retrato, num jogo de planos refletidos e cortes abruptos. Por um lado, as cenas são aquilo mesmo que aparentam: pessoas em sua intimidade, ocupadas em atividades prosaicas. Por outro lado, é como se a artista nos pregasse uma peça. Afinal, é possível projetar nas imagens daquelas mulheres sozinhas uma expectativa de “verdade”, como se nos revelassem a biografia de alguém, ou da própria artista, assim como se projeta o eu-lírico de Fixação na voz feminina de Toller.
Quintanilha, que também é cineasta, parece jogar com essa lente que se modifica na medida do desejo, das expectativas. Mas, nas pinturas, o gesto largo é evidente, assim como o anti-naturalismo da escala e dos enquadramentos. O que se vê são pinceladas que formam carnes, peles, roupas, ladrilhos e outras superfícies em cores saturadas, alto contraste (há também, na galeria, duas calcinhas penduradas em registros de chuveiro, transformadas em esculturas de porcelana).
A artista frequentemente realiza performances, direcionadas apenas à câmera, nas quais encena situações inusitadas que servirão como base para o trabalho final. Na pintura Amarras, por exemplo, parte da técnica erótica do shibari e prende com força um varal de roupas, quase machucando suas mãos. Para Catarse, arremessou uma garrafa de vinho contra a parede e depois recolheu os cacos.
Feito o vídeo da performance (e a sujeira que ela mesma terá que limpar), a artista escolhe um dos frames, retirando-o de contexto, e transpõe para a tela, mantendo a liberdade de alterar o que lhe parecer necessário. A matéria é da pintura, a estrutura do cinema; as imagens são facilmente reconhecíveis num mundo saturado delas, mas são também ambíguas. O grande aglutinador das obras parece ser o gosto pela ficção, pelo humor e por tudo o que há de inusitado na experiência vivida. Afinal, quem inutilizaria um varal de roupas? Quem faria um exame ginecológico ao som da descrição de um rosto? E quem colocaria calcinhas, como que esquecidas, num canto da exposição?
Em alguns casos mais explícitos de construção de imagens, a cena da pintura é a própria tela de TV: pintura da imagem do frame de ficção. É evidente na representação da tela de streaming com a lista de opções disponíveis e suas sinopses, ou mais sutil no caso da rara aparição do rosto da mulher, também agigantado, em que se vê a luz amarela de uma janela: ela invade a roupa da personagem, indicando que se trata de um reflexo que lhe é externo.
Fixação é um conjunto potencialmente aberto de cenas que são, ao mesmo tempo, inventadas, intimistas e bem-humoradas. A artista embaralha as categorias das imagens e mídias (cinema, pintura, TV, selfies para a internet...) e, com isso, as expectativas de quem vê os trabalhos e se relaciona com eles: tanto as pessoas quanto as imagens fazem parte de uma cultura visual que não se cansa de produzir e reproduzir ficções. O que há de inusitado dos trabalhos parece sugerir uma desconfiança daquilo que foi construído com aparência de “natural”, revelando, simultaneamente, que a ficção é parte inextricável da própria realidade. I want to be alone!