Mariana Leme
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Texto para a exposição Cumplicidade refletida, de Lia D Castro
11 de fevereiro - 18 de março de 2023
Galeria Jaqueline Martins, São Paulo, preview [aqui]


Lia D Castro: a cumplicidade refletida

Há um homem deitado no sofá, de costas para o espectador. Há outro homem deitado no sofá — ou seria o mesmo? — sobre o colo de uma mulher, cujas roupas são feitas de pintura e esparadrapos. A mesma cena íntima se repete algumas vezes, num interior geométrico feito de azuis e verdes. Ela lê um livro. Às vezes ele também lê. Há um abajur. Dentro de algumas pinturas, outras pinturas, como um caleidoscópio.

Por meio da repetição — de gestos, cenas, personagens e cores —, a artista Lia D Castro deixa evidente a dimensão reflexiva das pinturas e dos encontros que elas representam, tanto no sentido de espelhamento quanto no de contemplação e pensamento. Em uma delas, há a citação de bell hooks: “O amor é uma combinação de cuidado, compromisso, conhecimento, responsabilidade, respeito e confiança”, que acompanha as bordas da parede. Talvez todos os trabalhos de Castro estejam ancorados no amor. Não o amor burguês que muitas vezes se confunde com exploração de gênero, mas aquele definido por hooks, que é também “um espaço de despertar crítico e de dor”.[1] Que é ativo, colaborativo e cúmplice: no processo da pintura ou da fotografia, nos encontros e nas trocas sociais, afetivas, financeiras, criativas e criadoras.

Além de artista, Castro é também intelectual, educadora e trabalhadora sexual, entre muitas outras coisas. Os retratos são de seus amantes e clientes, com os quais estabelece uma relação de intimidade e compromisso. Leem juntos. E ela nos convida a adentrar as cenas, como se fôssemos cúmplices daquele momento tranquilo, que em nada lembra o estigma social que recai sobre corpos e corpas dissidentes, e sobre trabalhadores/as sexuais.

Talvez as obras sejam o inverso de uma sociedade estruturada por hierarquias sociais, raciais, territoriais e de gênero, ou representem o desejo de desmantelar este “contrato” profundamente violento. É como se restituíssem a humanidade de sujeitos socialmente indesejáveis, repelidos, invisibilizados e mortos. Nas obras de Castro, vemos pessoas atravessadas por histórias e afetos, gente que gosta de descansar, de perder-se em pensamentos e devaneios, de estar perto de objetos bonitos, amigos, amores.

Uma das cenas de interior que compõem a série Axs Nossxs Filhxs é o retrato de Davi, de quem vemos, repetidas vezes, a parte de trás da cabeça. A tinta a óleo, espessa, reforça a opacidade daquilo que não nos é dado a conhecer, como seu rosto, ao mesmo tempo em que acolhe o olhar, em fragmentos de seu corpo. A repetição do mesmo retrato em muitas telas — como se fosse uma variação musical — sugere que os encontros se alargam no tempo, numa intimidade em vias de construção. Em outra obra, dois de seus retratos e uma das cenas de interior com livro são representadas num espaço expositivo, apreciados por uma mulher de vestido florido, que olha a pintura com cuidado. Nós a vemos de costas, assim como Davi e o homem que se deita no sofá. As pinturas das cenas tranquilas, porém, não são nada triviais e representam um processo de subjetivação frequentemente negado a alguns corpos, como o de mulheres negras cis ou transsexuais. Ainda segundo hooks,

Trabalho, para artistas mulheres, nunca é o momento em que escrevemos ou nos dedicamos a outras artes, como pintura, fotografia, colagem ou técnicas mistas. No sentido mais amplo, é o tempo que se passa contemplando e preparando. O espaço solitário às vezes é um lugar onde sonhos e visões entram, às vezes é um lugar onde nada acontece. No entanto, é tão necessário para o trabalho ativo quanto a água é necessária para que algo cresça.[2]

Em outras obras, os modelos parecem estar em poses incômodas, ou pelo menos instáveis, nus, de cócoras, sobre cadeiras de rodinha. Ao lado de um desses retratos, que mostra o corpo de um homem branco anônimo, se lê: “aquele que é digno de ser amado”, o que deixa implícito que outras pessoas não são. De maneira sutil e contundente, Castro trata de questões políticas que são também profundamente violentas, como a série de naturezas-mortas, composta de pinturas que medem 20 x 30 cm. Além de retomar este gênero considerado o mais baixo na hierarquia pictórica, segundo a tradição ocidental, a artista alude à média de expectativa de vida das pessoas trans no Brasil — que morrem, frequentemente assassinadas, entre os vinte e os trinta anos de idade. Assim, o amor e a cumplicidade no trabalho de Castro não são sentimentos egoístas e despolitizados, mas estão profundamente comprometidos com a realidade social. Aliás, como não lembrar que as pequenas pinturas de flores foram historicamente associadas às mulheres de classe média e alta, brancas, cisgênero e frequentemente casadas, como um passatempo adequado? Como um outro caleidoscópio carregado de significados e rebatimentos, a artista reflete sobre hierarquias de gênero, história da arte, transfobia e noções enviesadas de feminilidade, em obras que convidam o/a/e espectador/a/e a vê-las de perto.

Junto das pinturas, a exposição apresenta gravuras e desenhos da série Michê, hipocrisia e carne, retratando homens de costas e seus encontros efêmeros e semi-clandestinos. Fotografias e objetos constróem retratos e autorretratos em que se confundem o projeto da artista e desejo de seus clientes, cujos corpos são fotografados por eles mesmos, além do retrato em Polaroid dos livros que leram juntos e o próprio DNA daqueles homens, guardados nos preservativos. Os trabalhos de Triplo do Auto/Retrato, da série Seus filhos também praticam podem parecer mais agressivos ou diretos que os trabalhos em pintura. Mas são também memória e construção da cumplicidade física, sexual e intelectual; relações que, quando expostas em seus fragmentos, nos convidam a imaginá-las em sua totalidade e sermos, mais uma vez, cúmplices daquelas histórias.

Dito de outra forma, as obras de Lia D Castro são um convite à criação de existências e histórias íntimas, à partilha de um lugar de afeto com as pessoas representadas, à empatia de também sentir vontade de deitar no sofá e desfrutar um momento de descanso, pausa e preguiça. Talvez elas funcionem como um espelho: nos implicando naquelas histórias como testemunhas de uma série de relações que a sociedade insiste em silenciar. Já não há inocência; as obras nos ensinaram sobre o amor.

Notas
[1] hooks, bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Editora Elefante, 2021, tradução de Stephanie Borges.
[2] ____. “Artistas mulheres: o processo criativo”. In PEDROSA, Adriano; CARNEIRO, Amanda; MESQUITA, André (orgs.). Histórias das mulheres, histórias feministas: Antologia. São Paulo: MASP, 2019, p. 237, tradução de Ligia Azevedo.