27 de abril - 28 de maio de 2022
Galerie Felix Frachon, Bruxelas

Em castelhano, costales designam sacos, normalmente utilizados para o armazenamento e transporte de alimentos. Costal, em português, faz referência às costas de uma pessoa, e a palavra é muito utilizada para referir-se aos pulverizadores agrícolas, usados nas lavouras como uma mochila. Raphia, por sua vez, é um gênero que abarca cerca de uma dezena de palmeiras, nativas de regiões tropicais africanas e, em menor número, da América Central e do Sul, cuja fibra é tradicionalmente utilizada para a confecção de esteiras, sacos, cordas, cestaria etc.
No final dos anos 1950, uma empresa italiana — a Commissionaria Vendita Macchine, Covema — começou a desenvolver ráfia sintética de polipropileno, que desde então tem sido largamente utilizada para a confecção de sacos e costales em escala industrial para o transporte de grãos, frutas, temperos, alimentos em geral (ou “secos e molhados”, no jargão do mercado) e até entulho. Pode-se dizer que o deslocamento constitui a essência desses objetos trançados. As palavras, os objetos, seus significados e usos também se entrelaçam na obra de Mano Penalva, por meio do deslocamento de seus usos e sentidos.
Sacos de ráfia sintética são os elementos centrais de uma série de trabalhos intitulada Origens (2016-em processo). Para encontrá-los, o artista também se desloca por várias partes, e em seguida transforma-os em pinturas de tecidos plissados e fixados num chassi. O movimento se dá em várias camadas: o trânsito global de produtos, para o qual os sacos foram feitos originalmente; o trânsito do artista, que muitas vezes precisa estar fisicamente num lugar para adquirir determinados tecidos; o deslocamento conceitual daqueles objetos, entre um sistema comercial de alimentos-commodities e o sistema (também comercial, mas altamente simbólico) da arte. A dobra da ráfia, que já não transporta nada, cria paisagens abstratas, composições autônomas.
Se levarmos em conta que os sacos transportam commodities ou, nas palavras da filósofa, física e ativista indiana Vandana Shiva, que “As corporações não plantam alimento; elas plantam lucros”,[1] é como se Origens buscasse restituir a característica cultural dos alimentos. Ou seja, de culturas e cultivos locais que se perderam, na medida em que o trânsito global de produção e distribuição de comida foi sendo monopolizado, gerando paisagens desoladoras de monocultura, destruição e fome.
Na verdade, não se trata de uma devastação recente; a América Latina (território de origem do artista) foi, desde a sua fundação, exportadora de commodities para o fornecer o lucro e satisfazer o desejo alheio. Nas palavras do escritor uruguaio Eduardo Galeano,
Essa triste rotina dos séculos começou com o ouro e a prata, e seguiu com o açúcar, o tabaco, o guano, o salitre, o cobre, o estanho, a borracha, o cacau, a banana, o café, o petróleo... O que nos legaram esses esplendores? Nem herança nem bonança. Jardins transformados em desertos, campos abandonados, montanhas esburacadas, águas estagnadas, longas caravanas de infelizes condenados à morte precoce e palácios vazios onde deambulam os fantasmas.[2]
Os Costales de Penalva são compostos por uma série potencialmente ilimitada de produtos, como açúcar refinado, açúcar mascavo “do Brasil”, manjericão, coco, aipim, milho, farinhas, fertilizantes. Alguns lembram campos agrícolas vistos de cima, com blocos de cor isolados, equivalentes às áreas cultivadas: amarelos, ocres, verdes, marrons, azuis e, em menor medida, cor-de-rosa e vermelhos. As “fronteiras” são evidentes como cercas, mas as formas vacilam, como se a racionalidade da divisão em lotes tivesse falhado.
Na verdade, estudos recentes vêm demonstrando aquilo que comunidades tradicionais já sabiam há muito: não há nada mais irracional do que uma monocultura que, além de funcionar como um garimpo de nutrientes[3] exaurindo a terra, depende de insumos químicos que, ao invés de controlar “pragas”, servem para selecionar as mais resistentes, intoxicando solos, lençóis freáticos, animais e pessoas. Ainda nas palavras de Shiva, “o paradigma da agricultura industrial está enraizado na guerra: ele literalmente usa os mesmos químicos que foram antes usados para exterminar pessoas para [agora] destruir a natureza”.[4]
Outros trabalhos da mesma série trazem fragmentos de palavras, legíveis em Fertilizante, Brown Sugar ou Coco; ilegíveis como uma cacofonia nos sacos de milho de pipoca e de açúcar refinado. Moose Jaw lembra uma marinha, com frases cortadas que parecem representar as espumas do mar. No topo, há a vaga indicação “Product of Canada”, mas não se sabe o que seria este produto. Se os sacos perderam sua função original de transporte, o texto perdeu também sua qualidade comunicativa. Restam apenas fragmentos de palavras nos costales transformados em pintura.
O artista, ao mesmo tempo em que aborda a questão das redes globais de transporte de alimentos-commodities, estabelece um diálogo com a tradição ocidental da paisagem, o segundo mais baixo gênero na hierarquia da pintura, conforme estabelecido pelas academias de belas-artes no século XVII. Em 1690, o Dicionário “universal” do francês Antoine Furetière, já trazia a conhecida definição de paisagem: “o território que se estende até onde a vista pode alcançar”.[5] Trata-se de uma afirmação profundamente interessada, uma vez que pressupõe um espectador, sugerindo que a própria existência da natureza depende do homem e de seus olhos. A segunda definição que traz o dicionário tem um sentido cultural ainda mais explícito: “Paisagem se diz também sobre os quadros nos quais são representados algumas vistas de casas ou de campos.”
Na hierarquia dos gêneros pictóricos, o mais elevado era o da pintura histórica e/ou mitológica cujo tema, segundo a epistemologia europeia-colonial, seria o mais relevante para a representação artística, sendo a natureza um mero pano de fundo. Apesar de parecer circunscrito a um período específico da história da arte, trata-se de um paradigma cultural bastante persistente, que se reflete, por exemplo, na prática do agronegócio: a terra e seus recursos são percebidos não apenas como inertes, mas também como inesgotáveis e disponíveis para satisfazer os desejos e caprichos (de alguns) humanos. Ainda no âmbito da arte, o influente crítico francês Charles Baudelaire afirmaria numa crítica ao salão de 1859: “Se uma composição de árvores, montanhas, cursos d’água e casas, a que chamamos paisagem, é bela, não o é por si mesma, mas por mim, por minha própria graça, pela ideia ou sentimento a que a ela associo.”[6]
As paisagens de Mano Penalva são artificiais, construídas, cuidadosamente dobradas. Sugerem que a monocultura produz campos estéreis, anti-naturais, assim como a ideia da paisagem no Ocidente, que existiria apenas por causa da “própria graça” humana. Na verdade, segundo o pensador Ailton Krenak, “Isso que chamam de natureza deveria ser a interação do nosso corpo com o entorno, em que a gente soubesse de onde vem o que comemos, para onde vai o ar que expiramos.”[7] Ao retirar os costales de seu circuito habitual, Penalva entrelaça os vários sentidos de cultura — cultivo da terra, tradições artísticas e valores sociais —, sugerindo que a arte, essa commodity altamente valorizada e às vezes transformada em monocultura colonial, tem também o potencial de criar novas paisagens.
Notas
[1] SHIVA, Vandana. Who Really Feeds the World? The Failures of Agribusiness and the Promise of Agroecology. Berkeley: North Atlantic Books, 2016, p. 24, tradução livre. No original: “Corporations do not grow food; they grow profits”.
[2] GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. “Prefácio”. Porto Alegre: L&PM, 2010.
[3] A expressão é do pesquisador estadunidense Robert R. Schneider. Ver Government and the economy on the Amazon frontier. Washington: The World Bank, 1995, pp. 15-16.
[4] SHIVA, Vandana, op. cit., p. 12. Um exemplo é o conglomerado alemão I. G. Farben, estabelecido em 1925 entre as empresas BASF, Bayer e Hoecht, que produzia a substância Zyklon B, utilizada nas câmaras de gás nazistas.
[5] Disponível em https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k50614b.image.
[6] Apud LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.). A pintura: textos essenciais. Vol. 10: os gêneros pictóricos. São Paulo: Editora 34, 2008, p. 124, grifos meus.
[7] KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 74.