Mariana Leme
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Publicado em Caderno, livro de artista, 2022



Cor de terra batida: instabilidade e amor no trabalho de Paula Siebra

Sou uma garota que sonha com o ócio, sempre sonhei. O devaneio sempre foi necessário para minha existência. […] 
Sou do tipo que se encontra no sofá, na varanda dos fundos, no balanço, para assistir imóvel ao mundo. — bell hooks

No ateliê de Paula Siebra, uma casa fresca no centro histórico de Fortaleza, estão alguns de seus trabalhos prontos, outros em andamento e também muitos estudos: em papel, em tela, por escrito; fragmentos de ideias, das vidas e das coisas que povoam o imaginário da artista. Ainda que restrito a um número cada vez menor de pessoas, um lugar de trabalho que seja agradável e silencioso “é tão necessário […] quanto a água é necessária para que algo cresça”,[1] nas palavras da grande intelectual bell hooks, segundo a qual o amor é um ato político, uma força transformadora.[2] Lembro-me de ver, em uma das paredes do ateliê, anotações sobre “gente da minha rua”: seu Juvenal, um homem de aparência desconfiada; o esboço do retrato de uma mulher de cabelos brancos sobre um fundo verde; outra que posa sentada, com as mãos no colo e um sorriso tímido. A pintura, nesse caso, não é trabalho abstrato que se faz em qualquer lugar, mas um exercício de pertencimento, profundamente ancorado na realidade material, tanto do próprio ofício, quanto da realidade à sua volta.

Para hooks, ao contrário de um sentimento passivo, o amor é uma prática constante de “cuidado, compromisso, confiança, responsabilidade e respeito”,[3] o que não significa negar a realidade de injustiça institucionalizada, mas fazer uma escolha consciente de como se responde a ela. Na verdade, conforto, beleza e cuidado (tanto em termos materiais quanto simbólicos) não deveriam ser exclusivos de uma elite, pelo contrário: o horizonte político da sociedade como um todo.

Numa das mesas do ateliê estão os pigmentos moídos, os óleos e as ferramentas para a preparação das tintas: atividade lenta, artesanal e meticulosa, que carrega uma tradição de séculos. Não se trata de preciosismo técnico, porém: a matéria da pintura e o próprio exercício deste ofício – cotidiano, reiterado – trazem em si um saber que se conecta profundamente com as imagens produzidas por Siebra e sua pesquisa conceitual, de maneira alargada. Um saber que vem do corpo, do tempo, e que vai se decantando em fragmentos e em camadas sobrepostas.

Apesar da aparente calmaria das imagens, as cores são instáveis, cujo efeito óptico pode se alterar a depender das outras com as quais se combinam. Os fundos terrosos aplicados na tela antes ou depois de tons de cinza criam um conflito sutil, perceptível apenas a quem escolhe observar os trabalhos de maneira mais demorada. Pouco importa. As tensões estarão lá, independentes do “sujeito”, que a tradição ocidental elegeu como sendo o centro do universo.

Na superfície — e a superfície é fundamental para a pintura —, o trabalho de Siebra dialoga tanto com os objetos cotidianos e frequentemente artesanais, como jarros, santos, canecas, rendas, quanto com uma tradição da pintura que floresceu sobretudo nos Países Baixos do século XVII. O filósofo Tzvetan Todorov, em seu livro Elogio do cotidiano, afirma que os gêneros da pintura não são apenas distintos mas fazem parte de uma hierarquia estabelecida “ao longo dos séculos […], reflexo de uma concepção sobre a ordem do mundo”.[4] Segundo esse esquema, “o mundo inanimado, mineral e vegetal é o mais baixo”.

Contrariando a hierarquia e profundamente atravessados pela religiosidade protestante, pintores e pintoras do Norte da Europa passaram a representar o cotidiano a partir de uma dignidade ontológica: “as mulheres que fazem a limpeza são colocadas nos pedestais dos santos e dos heróis da antiguidade”,[5] como se os acontecimentos banais fossem tão importantes quanto, ou ainda mais, que as grandes personalidades históricas ou mitológicas. “A pintura holandesa”, afirma Todorov, “não nega as virtudes e os vícios, mas os transcende em prazer diante da existência mundana”.[6]

Teria esse elogio da beleza um sentido semelhante àquele do cuidado em bell hooks? Difícil dizer, mas talvez exista algum ponto de contato, no sentido de que é agradável olhar para uma pintura de Johannes Vermeer, o que extrapola o simples deleite: “O espaço solitário às vezes é um lugar onde sonhos e visões entram, às vezes é um lugar onde nada acontece […] Essa imobilidade, essa quietude, [é] necessária para o cultivo contínuo de qualquer devoção a uma prática artística”, afirma hooks.

No entanto, não se trata de um elogio acrítico do cotidiano, como se fosse possível sublimar a profunda desigualdade que estrutura a sociedade. Se os artistas da chamada “época de ouro” holandesa puderam ignorar que a riqueza do país era fruto de uma brutal exploração — inclusive pela distância física das plantations —, evitar tais conflitos numa ex-colônia como o Brasil, o país vermelho em brasa, é bem mais difícil.

Por essa razão, no trabalho de Siebra, não apenas as cores são instáveis, mas as próprias imagens sugerem uma tensão permanente, ainda que sutil. Em Duas estacas e ilha, por exemplo, os pedaços frágeis de madeira pintada parecem sustentar a montanha, criando uma paisagem estranha. Mas não apenas elas estão fincadas na areia macia e movediça da praia, como também não chegam a tocar na ilha. São milímetros, capazes de desestabilizar toda a paisagem, ainda mais que os volumes sinuosos de suas sombras projetadas no chão.  

Muitas das pinturas são construídas em camadas de cor e memória, como nas paredes descascadas ou desbotadas pelo sol, quando faltam recursos para manutenção e outras coisas são mais urgentes que uma fachada bem-acabada. Talvez estas sejam um testemunho da precariedade da existência, mas, mesmo assim, alguém teve o cuidado de desenhar dois barquinhos simétricos na porta. Ou estrelas.

Além da tradição, da memória e do tempo, há também o humor, mostrando que nada é exatamente o que parece, apesar da solenidade tradicional (e elitista) da pintura a óleo. Em Nu na rede, um homem está deitado tal qual descreve o título, com a vista de sua janela ao fundo. Da mesma cor alaranjada, pele e tecido quase se misturam e um espectador desavisado mal notaria seu pênis ereto, iconografia rara na história da arte, cujo sexismo privilegiou a nudez e a “disponibilidade” dos corpos femininos para deleite do espectador, idealmente um homem branco.

Em outra imagem, um abajur amarelo — referência mais ou menos direta à tradição das naturezas-mortas — é sustentado por uma estrutura de ferro que se assemelha a quatro rolos de papel higiênico nada solenes, e, numa terceira, a figura da menina com espelho não responde às expectativas de contato — seu olhar oblíquo volta para si, criando uma promessa de cumplicidade, jamais alcançada. Em Cascavel, um buquê floresce no telhado da casa; em Merenda com suspiros talvez apenas os brasileiros (e alguns falantes de português) compreenderão as duas principais palavras do título. A imagem está lá em sua crueza, aparentemente sem mistérios. Mas para decifrar essa suposta “crueza” é preciso vivência: uma merenda não é qualquer refeição; os suspiros são doces feitos de clara em neve com açúcar, cujo nome significa também um sussurro de saudades. O que dizer de Café com pão, pintura quase tautológica, em que estão representados um copo de café e um pão? (Em São Paulo dizemos “pão francês”, no Ceará é chamado de “carioquinha”, em referência carinhosa aos habitantes da cidade do Rio de Janeiro.).

Esta instabilidade, este paroxismo que perpassam a obra da artista são significativos: para compreender a pintura, não basta um conhecimento letrado que decifra — arrogante e taxonomicamente — as iguarias representadas. Café com pão é muito mais que café com pão. Ao mesmo tempo, não são imagens “exóticas”, nem ao olhar estrangeiro, tampouco àquele de outras regiões do país. Mas conhecer os nomes será tão superficial quanto a superfície quase chapada da pintura, como se a artista estivesse propondo um jogo entre os objetos e o espectador, cuja compreensão depende também de uma experiência prévia, de afeto. Em outras palavras, Siebra parece fazer graça com a indiferença ou a “neutralidade” almejada pela arte ocidental, ou a suposta objetividade das naturezas-mortas. Alguém que não conheça o Brasil dificilmente conseguirá alcançar o significado mais profundo das pinturas e de sua atmosfera, ainda que estas não se apresentem como os costumes exóticos de um povo estranho. No entanto, o esmero com o qual se arruma a mesa da refeição permanece, assim como a sugestão da brisa fresca, que todos podemos experimentar.

Em sua pintura, Siebra usa tons terrosos que lembram o Siena, pigmento bastante utilizado durante o Renascimento (o nome faz referência à cidade italiana) que, quando cru, tem uma coloração ocre e, quando aquecido, torna-se marrom avermelhado. Os sítios onde tradicionalmente se encontrava este composto de óxido de ferro e óxido de manganês estão exauridos, e este passou a ser produzido sinteticamente desde meados do século XX. Não deixa de ser interessante pensar que o extrativismo europeu arrasou também — e literalmente — uma de suas terras mais simbólicas.

No Brasil, os tons terrosos podem fazer lembrar a recente destruição pelos dejetos lamacentos de mineração em cidades como Brumadinho, tragédia anunciada que custou a vida de centenas de pessoas. Foi também a mineração que, no século XVIII, destruiu a vida de milhares de outras pessoas, e construiu sobre seus corpos majoritariamente negros as cidades que hoje são consideradas “patrimônio da humanidade”, como Ouro Preto, Tiradentes, Mariana e Diamantina.

As cores, no âmbito de uma sociedade colonial-extrativista, não são jamais isentas. Ao mesmo tempo, e apesar da violência, a região do Vale do Jequitinhonha, onde fica Diamantina, é um dos lugares mais importantes de produção cerâmica, de pessoas que inventam sua existência a partir do barro. Este imaginário também alimenta o trabalho de Siebra, por exemplo em Imbuzeiro, em que os braços da mulher e os galhos da árvore parecem ser feitos da mesma substância, esculpidos em argila mole de cor marrom-alaranjada, assim como o autorretrato da artista dialoga com alguns ex-votos de pescoço largo, feitos em cerâmica em vários estados do Nordeste.

Assim, a cor da terra pode ser testemunho de uma profunda dor, mas também de vivências afetivas e de um exercício de liberdade, criação estética e emancipação a partir do barro úmido, fértil. Como nos versos de outra grande intelectual, Beatriz Nascimento: “Alegria de estar sentada na terra/ Do alto deste monte/ Espantando os insetos com cuidado/ Com muito calor por dentro e por fora/ Como há muito não acontecia,/ Minha beleza original/ Sem pressa de nada”.[7]

bell hooks, no livro de memórias sobre sua infância — cujo título, Bone Black, faz referência ao pigmento preto obtido a partir da carbonização de ossos —, conta que, em sua escola rural, os alunos vendiam ingressos para apresentações, a fim de levantar fundos, e que as pessoas ricas compravam muitos deles. Ela rememora que “a carne daquelas pessoas [brancas e ricas] é frequentemente a mesma dos porcos nos livros de histórias” e que as crianças aprendiam sobre cores com os crayons:

Aprendemos a diferença entre branco e cor-de-rosa e a cor que chamam de “cor de pele”. O giz cor-de-carne nos diverte. Como o branco, sua cor nunca se destaca no papel grosso que nos dão para desenhar, ou nos sacos de papel marrom no qual desenhamos em casa. A carne [“cor de pele”] que conhecemos não tem relação com a nossa, já que somos marrons e marrons e marrons como todas as coisas boas. E sabemos que os porcos não são cor-de-rosa ou brancos como aquelas pessoas-carne.[8]

Para além da destruição das mineradoras, do garimpo e da colonização de maneira geral — inclusive em nosso imaginário —, os tons terrosos de que são feitas grande parte das pinturas de Siebra podem também significar os marrons de “todas as coisas boas”. O terreiro de terra batida sobre o qual se brinca de pau de fita, o barro que dará forma aos utensílios que filtram a água e a mantém em temperatura agradável, o roçado de hortaliças e frutas que permite alguma autonomia a quem planta — nada mais distante do estereótipo modernista do “trabalhador brasileiro”: pobre, alienado, que sofre, e que seria dependente de tutela. Afinal, já dizia o carnavalesco Joãozinho Trinta: “quem gosta de pobreza é intelectual”.

Se a sociedade em que vivemos é marcada por uma profunda violência, há também o amor, enquanto responsabilidade, respeito e conhecimento, daqueles que buscam fazer frente a este estado de coisas. É um trabalho cotidiano, que exige comprometimento e paciência. O amor de uma pessoa que tece renda de bilro para enfeitar a própria casa e também como fonte de receitas. Sentada à varanda, sentindo a brisa do mar. 

Notas
[1] hooks, bell. “Artistas mulheres: o processo criativo. In: PEDROSA, Adriano; CARNEIRO, Amanda; MESQUITA, André (orgs.). Histórias das mulheres, histórias feministas: Antologia. São Paulo: MASP, 2019, p. 237, tradução de Ligia Azevedo. A citação da epígrafe está na página 236.
[2] hooks, bell. Tudo sobre o amor. São Paulo: Elefante, 2021, tradução de Stephanie Borges. Na página 55, a autora afirma: “pensar no amor como uma ação, em vez de um sentimento, é uma forma de fazer com que qualquer um que use a palavra dessa maneira automaticamente assuma responsabilidade e comprometimento”. hooks, numa triste coincidência, faleceu no mesmo dia em que conheci o trabalho de Paula.
[3] Idem, 2021, p. 50.
[4] TODOROV, Tzvetan. Éloge du quotidien: Essai sur la peinture hollandaise du XVIIe siècle. Paris: Points, 2009, p. 12.
[5] Idem, 2009, p. 110.
[6] Idem, 2009, p. 109.
[7] NASCIMENTO, Beatriz. Rocio. In: RATTZ, Alex; GOMES, Bethânia (orgs.). Todas (as) distâncias: poemas, aforismos e ensaios de Beatriz Nascimento. Salvador: Editora Ogum’s Toques Negros, 2015, p. 32. [8] hooks, bell. Bone Black: Memories of Girlhood. Nova York: Henry Hold & Co., 1996, p. 7-8.