Contemplado pelo FAC - fundo de arte e Cultura do Estado de Goiás, edital de fomento ao hiphop

Base Central 23, ou a pintura como espaço compartilhado
Eu sou estas casas
encostadas
cochichando umas com as outras.
— Cora Coralina [1]
No Setor Sul da cidade de Goiânia parecem conviver diferentes tempos históricos sobrepostos: o projeto dos anos 1940 parcialmente implantado; uma praça dividida em dois pela construção de uma avenida nos anos 2000; muros, cercas, grades e portões levantados, não se sabe exatamente quando. Apesar de ser agradável estar sob as árvores durante os meses quentes, a praça Wilton Valente Chaves — batizada informalmente de Cora Coralina — não costuma ter muito movimento. Em outubro de 2023, o mato estava crescido nos arredores deste lugar que, a princípio, deveria ser a fachada das casas. Transformadas em fundos durante a implantação do projeto, as paredes cegas “deram as costas” ao espaço livre e, além da vegetação alta, havia também um estacionamento improvisado.
Sobre um pequeno muro de “esquina”, Kboco deu início ao projeto Base Central 23. O artista, que cresceu pelas vielas do bairro, começou preenchendo um espaço a princípio desimportante, com reboco envelhecido, uma porta de metal tipo “bico de diamante”, grades de ferro e rolos de arame farpado. Depois vieram outras pinturas, a começar pelo muro da casa ao lado e, em seguida, outra empena das proximidades. A Base do título faz referência ao lugar onde as ideias se ancoram, o chão por onde caminham os habitantes do lugar; Central é o planalto, que localiza geograficamente a cidade de Goiânia e 23, o ano de execução deste projeto público.
Há mais de vinte anos, Kboco realiza pinturas em diferentes suportes, desde a tradicional tela esticada em chassi, mas também pedaços de madeira, folhas, muros e fachadas residenciais. O trânsito entre os diferentes suportes complexificam a própria ideia de pintura, sugerindo uma existência física que extrapola a imagem, a representação de algo externo a ela e mesmo os limites de sua autonomia. Segundo a jornalista e crítica de arte Maria Hirszman,
É clara sua intenção de fundir as questões pictóricas — que incluem elementos como a beleza do ornamento e o fazer com vagar e preciosismo — com a necessidade de expandir-se para além do espaço bidimensional, incorporando elementos da paisagem, sobretudo da paisagem urbana. Kboco usa a arquitetura quer como estopim do processo criativo, quer como suporte do trabalho, ambicionando corporificar ações transformadoras do espaço social. [2]
De fato, a pintura chama a atenção para o espaço, qualifica-o, e o artista negocia a invenção de suas formas com a arquitetura que estava lá: nesse caso, alguns tijolos descobertos, o acabamento fora do prumo, elementos vazados, arames, calhas. Não por acaso, durante a produção dos murais, mais de um vizinho apareceu para conversar; alguns dias depois, o lixo que estava jogado na praça foi retirado.
É como se o gesto do artista — para além de expandir as possibilidades da pintura — fizesse reviver um lugar semi-abandonado, chamando a atenção para as construções que antes passavam despercebidas, a praça “vazia” e os muros privados que acabaram por configurar o desenho do espaço comum, em negativo. A pintura extrapolou seus limites e tornou-se parte do espaço compartilhado.
Eu sou aquela amorosa
de tuas ruas estreitas,
curtas,
indecisas,
entrando,
saindo
uma das outras. [3]
Kboco não projeta um desenho no papel, a ser executado num determinado lugar, mas faz intervenções aos poucos, num diálogo silencioso com a cidade construída: camadas de cor sobrepostas, linhas, figuras, campos cromáticos que vão se desenhando ao longo dos dias. Com vagar, dando um passo atrás e verificando os arranjos que se constróem. Tomando decisões formais a depender das estruturas que já existiam. Nas pinturas, os elementos geométricos não têm o rigor das ferramentas de desenho técnico, mas acompanham o movimento do corpo, das mãos e das paredes, estabelecendo uma composição acabada, mas instável: “um fio condutor que mais parece uma corda bamba”, ainda nas palavras de Hirszman. [4]
Uma “corda bamba” é sempre vacilante, o que resulta num equilíbrio sutil de formas, planos e linhas, em vias de se rearranjar — como aliás, a própria dinâmica das cidades. Nada mais distante que o desejo modernista de organizar a vida das pessoas, como se estas devessem ser tuteladas em nome de uma autoritária “civilização”. A propósito, o engenheiro Armando de Godoy, que havia apresentado parecer sobre a transferência da capital goiana nos anos 1930 e assumiria a construção do Setor Sul, depois da demissão de Attílio Corrêa Lima, o primeiro planejador, assim define o que seria uma cidade:
A cidade moderna […] que obedece às determinações do urbanismo, é um centro de cultura, de ordem, de trabalho e de atividades bem coordenadas. Ela educa as massas populares, compões-lhes e orienta-lhes as forças e os movimentos coletivos e desperta energias extraordinárias entre os que aí vivem e ficam sob a sua influência civilizadora. [5]
Os murais de Kboco não “educam” ninguém, mas criam um lugar de deleite, ou prazer desinteressado. Elas parecem sugerir que ali os pedestres são bem-vindos, e os muros sem janela já não são mais hostis às pessoas, porque se tornaram pintura. Há o ritmo das cores; linhas de contorno marcado feitas com pincel, elementos com bordas suaves de spray, sobreposições, transparências, brilhos. Algo como a figuração do próprio ritmo de uma cidade, com pessoas indo e vindo, comerciantes, moradores que passeiam com seus cachorros ou que vão buscar os filhos nas escolas. Em geral, um ritmo tanto mais vivo quanto maior a diversidade de tipos, histórias e motivos pelos quais as pessoas utilizam as ruas e praças.
Na introdução de Poemas dos becos de Goiás, Coralina afirma que “Este livro pertence mais aos leitores do que a quem o escreveu”. Talvez as pinturas da Base Central 23 pertençam mais à cidade que ao artista, mais ao morador anônimo do que ao colecionador de arte contemporânea. Um convite para que o espaço público seja utilizado para além dos trajetos corriqueiros (e pré-estabelecidos) entre os lugares de moradia e trabalho.
Eu sou o caule
dessas trepadeiras sem classe,
nascidas na frincha das pedras:
Bravias.
Renitentes.
Indomáveis.
Cortadas.
Maltratadas.
Pisadas.
E renascendo.
Notas
[1] CORALINA, Cora. “Minha cidade”, in Poemas dos becos de Goiás e outras estórias mais. São Paulo: Global, 2012 (1ª ed. 1965). Trechos deste poema serão citados ao longo do texto.
[2] HIRSZMAN, Maria. Kboco: Sertão nômade. Goiânia: UFG, 2013, p. 20.
[3] CORALINA, Cora. “Minha cidade”, op. cit.
[4] HIRSZMAN, Maria, op. cit., p. 38.
[5] GODOY, Armando Augusto de. A Urbs e seus problemas. Rio de Janeiro: Jornal do Commercio, 1943, p. 212, grifos meus. Apud MOTA, Juliana Costa. “O Setor Sul em Goiânia: o espaço público abandonado”, relatório de Iniciação Científica, EESC-USP, 1999. Ver também CAIXETA, Eline Maria Mora Pereira. Setor Sul: processo de formação do espaço urbano. Goiânia: Cegraf UFG, 2021. Disponível em https://files.cercomp.ufg.br/weby/up/403/o/Livro_Setor_Sul.pdf.