São Paulo, quadra, abr.-jun. 2025

Substância e fundamento no trabalho de Arorá
1. prólogo
Em meados do século 19, um popular anúncio de estúdios fotográficos nos Estados Unidos recomendava: “Proteja a sombra antes que a substância desapareça”.1 Espécie de memento mori de uma nascente cultura de massas, os fotógrafos ofereciam às pessoas (valendo-se de sua angústia) a permanência da imagem, ou “sombra”, para além da vida de nossa “substância” comum, o corpo.
Com a sofisticação que lhe era característica, a ativista Sojourner Truth inverteu os termos daquela promessa calcada na memória individual e, em 1864, encomendou algumas versões de seu retrato, no formato carte de visite, em que se lia: “Eu vendo a sombra para fundamentar a substância”.2
Apesar de sutil, a mudança é radical. Truth apropria-se de sua imagem, transformando a “sombra” da nostalgia em instrumento político: a venda das fotografias seria fundamento e suporte a uma causa coletiva, a da emancipação de seres humanos por meio da abolição dos sistemas escravista e patriarcal.3 A “substância” do corpo individual transforma-se, com seu gesto, em corpo social, sugerindo que a autonomia do sujeito — ou a supremacia humana, construída à imagem de homens brancos4 — não passa de violenta retórica.
2. fundamento
Parece haver um paralelo entre o suporte da pintura de Arorá e o suporte à “substância” no enunciado de Sojourner Truth. Afinal, a artista não parte do tradicional “sobre tela” ou “sobre madeira” — que seriam meros receptores de uma imagem —, mas faz pintura sobre pintura: suporte transformado em seu sinônimo mais denso; suporte como fundamento. Em termos materiais, Arorá deposita na tela, preparada com gesso, camadas de bastão oleoso feito com pigmento, cera de abelha e carnaúba, para em seguida cobri-las com outras camadas de bastão e tinta a óleo e assim sucessivamente, até que a “substância” ganhe corpo, ao mesmo tempo em que se torna invisível: jogos cromáticos, composições, figuras são seguidamente ocultas pelas camadas que se avolumam. Em outras palavras, não se trata de uma imagem desencarnada, como a pintura é frequentemente percebida, mas ela se constitui enquanto acúmulo de materiais de diversas naturezas, depositados lenta e meticulosamente. Um exemplo relevante é Lótus de Ferro, em que, nas últimas camadas, a artista depositou folhas de prata e pigmento branco transparente. O que lhes dá sustentação e intensidade, porém, é a cor escura, agora oculta.
A artista se apropria do pentimento e inverte seu significado, num outro paralelo possível com a imagem de Truth (e que pertence somente a ela). Trata-se de uma torção conceitual que se vale da técnica para refletir sobre outros modos de existência, estabelecendo uma relação direta entre imagem e corpo (de uma pessoa, de uma pintura ou de uma associação política). Gesto comum na tradição ocidental, o pentimento se refere ao arrependimento do(a) artista, que decide alterar, a posteriori, alguns dos elementos do quadro, cobrindo-os com novas camadas de tinta.5 Arorá, por sua vez, não se arrepende de nada, mas transforma aquilo que seria uma “falha” pessoal num corpo pictórico de camadas que fundamentam a pintura enquanto um conjunto de muitos agentes, ainda que nem sempre estejam visíveis.
É possível, no entanto, vislumbrar aquilo que está “sob” a pintura, e não exatamente “abaixo” dela.6 A artista às vezes raspa camadas de tinta seca com palitos ou goivas, criando pequenas aberturas que permitem que outras camadas retornem à superfície visível. Além disso, quando vista de maneira oblíqua e não frontal — ou seja, sem que a pintura seja reduzida à sua imagem —, a espessura dos materiais acumulados atesta a própria presença, embora oculte a “sombra” das cores, composições, figuras e outros elementos, criados e posteriormente encobertos.
Mas o que resta visível também se impõe, e a imagem sugere que é maior que ela mesma. Algumas linhas diagonais partem de um vértice para extrapolar a superfície do quadro e pinceladas sinuosas parecem se movimentar em ondas, numa explosão, formando fluxos ou correntes de energia. A sombra, tal qual em Truth, seduz o olhar como um artifício, deslocando-o em direção à substância, a tudo aquilo que está oculto, mas que é chão e fundamento.
3. espaço
Ao contrário do procedimento pictórico de encobrir, alguns dos trabalhos operam com a abertura. Tamanha abertura que parecem ser feitos de ar — elemento ao mesmo tempo diáfano e essencial para a manutenção da vida. Algumas esculturas se estruturam com fios metálicos de prata e criam desenhos provisórios, que se alteram na medida de uma caminhada. Outras foram feitas a partir da coleta de vergalhões de ferro que, depois de um tempo prolongado de contato com o oxigênio do ar e a água acabaram por se corroer. Com o banho de prata, a artista deixou em evidência todas as marcas do tempo, agora sedutoras ao olhar, sem no entanto escamotear sua banalidade.
No espaço da galeria, as esculturas de material corroído estão protegidas; outras, feitas a partir de técnicas da ourivesaria em prata, foram instaladas no espaço do jardim e, portanto, expostas pela primeira vez às intempéries. Assim, Arorá faz impregnar nelas a dimensão do tempo, o que estabelece um diálogo com outras obras que desafiaram preceitos disciplinares. Afinal, a escultura tradicional — assim como a imagem dos heróis — deveria ser robusta e duradoura. Os fios suspensos no espaço, quase diáfanos, fazem pensar na peça de John Cage, composta por quatro minutos e trinta e três segundos de pausa, ou o silêncio necessário para a harmonia das composições ocidentais. Mas nela, não há o silêncio: o espaço é preenchido pela respiração, as expectativas de quem “ouve” a composição, o peso de seus corpos. O que há em Cage, e talvez também no trabalho de Arorá, é a impossibilidade material do silêncio, pelo menos nesta Terra.
Em alguns dos fios e vergalhões banhados em prata, a artista inseriu pérolas, às vezes encobertas com o metal. Pérolas, como se sabe, são formadas por um ser invertebrado que reage à presença de um corpo estranho em sua concha. Como um pequeno artifício, as pérolas nas esculturas abertas de Arorá sugerem que, além do tempo presente — da substância do espaço, do ar e dos sons —, há uma história passada, não necessariamente feliz.
Como bem sabia Sojourner Truth, o imensurável, a substância e tudo aquilo que não pode ser capturado pela imagem, é também uma questão de liberdade. E Arorá nos convida a voltarmos o olhar não à “sombra”, mas aos fundamentos: a tudo aquilo que existe, ou existiu, e que pode ser reformulado. Material e concretamente como numa pintura.
Notas
1 No original: “Secure the shadow ere the substance fade”.
2 No original: “I sell the shadow to support the substance”. Segundo o portal Brasiliana Fotográfica da Biblioteca Nacional, “Os cartes de visite apresentavam uma fotografia de cerca de 9,5 × 6 cm montada sobre um cartão rígido de cerca de 10 × 6,5 cm. A copiagem era feita geralmente com a técnica de impressão em albumina [...] [o que] permitiu a produção em massa de fotografias”.
3 Aqui, o “suporte” se enreda também nas transações financeiras: Truth direciona o valor da venda das fotografias para as causas políticas, ao mesmo tempo em que registra sua própria imagem na lei de direitos autorais, no mesmo ano de 1864. Considerando que ela havia conseguido libertar a si e a sua filha pequena em 1826 e outro de seus filhos em 1828, a partir de então mais ninguém poderia apropriar-se indevidamente nem mesmo de sua “sombra”.
4 Immanuel Kant, Metafísica dos costumes. Petrópolis: Vozes, 2013. Primeira edição de 1797.
5 Esses elementos são frequentemente “descobertos” com o uso de imagens de raio-x e reflectografia infravermelha. Se a fotografia de carte de visite procurava “salvar” a imagem de alguém do esquecimento, novas técnicas acabaram por “condenar” a coesão da pintura do(a) artista, anos depois de sua morte — o que desmente o imaginário popular da arte como sendo fruto de um ser especial.
6 Ver Fred Moten e Stefano Harney, Sobcomuns. Planejamento fugitivo e estudo negro. São Paulo: Ubu, 2024, incluindo a nota de tradução de Mariana Ruggieri, Raquel Parrine, Roger Farias de Melo e Viviane Nogueira, às pp. 204-6.




