A trama do limo
12 de novembro de 2022 - 29 de janeiro de 2023
Biblioteca Mário de Andrade, São Paulo
Artistas: Bruno Ferreira e Eva Castel
Folder disponível [aqui]

A trama do limo, ou a vida que brota das ruínas
Um volume grande e amorfo de terra úmida parece ter caído numa sala da Biblioteca Mário de Andrade, mas ficou preso por cintas amarelas. Nele, alguns cogumelos brotam. Caracóis-autômatos vagam pelo chão, emitindo um leve ruído metálico. A trama do limo, exposição de Bruno Ferreira e Eva Castiel, pode ser descrita como uma espécie de cena de teatro distópico, ainda que bem-humorada.
Se a ideia da destruição do planeta por um meteoro faz parte da cultura pop, entre a comunidade científica há o consenso de que a vida na Terra está seriamente ameaçada por uma causa interna: a espécie humana. Um dos conceitos frequentemente utilizados para descrever o fenômeno é o de Antropoceno, segundo o qual o ser humano teria alterado tão profundamente as características do planeta a ponto de inaugurar uma nova era geológica. A ameaça externa e a interna — ainda que pareçam opostas — têm em comum a centralidade da espécie que, de um lado, corre o risco de ser extinta como os dinossauros ou, de outro, que soberbamente foi responsável pela própria destruição.
No entanto, afirma a antropóloga Anna Tsing,
Esse antropo- nos impede de dar a devida atenção para as manchas nas paisagens, as temporalidades múltiplas e as assembleias instáveis entre humanos e não humanos, a matéria mesma da sobrevivência colaborativa.[1]
A trama do limo dialoga com esses dois aspectos da catástrofe presentes na cultura contemporânea: a fantasia da destruição do mundo por um corpo implacável que vem dos céus — materializado como um grande torrão suspenso — e os desequilíbrios ecológicos cada dia mais evidentes, representados e comentados. Os artistas, no entanto, sugerem um deslocamento de perspectiva que, quando enunciado, pode parecer óbvio: o fim da espécie humana não significa, necessariamente, o fim do mundo.
Em termos políticos, Tsing convida-nos a considerar que “As vidas incontroláveis dos cogumelos são uma dádiva — e um guia — quando o mundo que imaginávamos ter controlado fracassa”.[2] O mundo, na verdade, não é “controlável”. No limo da terra interagem um sem-número de espécies; os fungos, dos quais podem brotar cogumelos, dia após dia, transformam a matéria morta em vida, disponibilizando nutrientes para outras espécies e estabelecendo uma complexa rede subterrânea de comunicação e interdependência. Os encontros, frequente e aleatoriamente podem se tornar “acontecimentos”, cujos efeitos — como a criação de uma nova forma de vida — são “maiores do que a soma de suas partes”.[3]
O meteorito dos artistas é feito de terra fértil, de onde esparsos cogumelos brotam lentamente, em contraste com os caracóis que andam apressados — o contrário do que seria de se esperar quando ainda eram habitados por lesmas. A gosma que arrastavam no chão está ausente. Nesse sentido, os trabalhos sugerem que a vida insiste em nascer no interior do objeto da destruição, e não apesar dele, como se materializasse a “sobrevivência colaborativa em tempos de precariedade”.[4]
A Trama do limo pode ser considerada também como uma anti-paisagem, ou ainda uma espécie de natureza-viva, num diálogo com categorias da história da arte ocidental que, durante algumas centenas de anos, foram tidas como inequívocas.
No século XVII, as academias de belas-artes estabeleceram que a paisagem era o segundo mais baixo gênero na hierarquia da pintura, perdendo apenas para as naturezas-mortas. A paisagem — e, por metonímia, a própria natureza — era percebida como apanágio do ser humano. Segundo Charles Baudelaire, talvez o mais influente crítico do século XIX, se uma paisagem “é bela, não o é por si mesma, mas por mim, por minha própria graça, pela ideia ou sentimento a que a ela [eu] associo”.[5] Conceitualmente, o sentido de suas palavras não parecem tão distantes do Antropoceno, segundo o qual o ser humano teria alterado o mundo “por sua própria graça” — e talvez de maneira irreversível.
As pinturas de natureza-morta são composições com arranjos de flores, frutas, caracóis, víveres e objetos inanimados, que trazem frequentemente um sentido moral, remetendo à brevidade da vida: as flores murcharão em breve, os pescados apodrecerão, a areia de uma ampulheta vai se depositar no frasco de vidro, assim como o espectador da pintura vai perecer. Por outro lado, são também uma celebração da supremacia do homem europeu, para o qual estariam à disposição tudo e todos considerados “natureza”, celebração da riqueza de alguns e estímulo para os sentidos de seus corpos. Porém, do ponto de vista dos fungos e da pulsante vida interespécie, uma flor apodrecida não significa apenas a morte daquele ser, mas também a possibilidade de redistribuição de nutrientes.
A trama do limo, em sua ambiguidade, sugere uma rede de existências interdependentes — o que não quer dizer pacíficas — e uma conspiração. É como se os fungos que brotam do grande volume de terra e os caracóis-autômatos nos dessem um recado, às avessas daquele das naturezas-mortas: o Homem ocidental está morrendo. De suas ruínas, nascerão infinitas possibilidades de associações, encontros, disputas e — por que não? — acontecimentos.
Notas
[1] TSING, Anna L. O cogumelo no fim do mundo. Sobre a possibilidade de vida nas ruínas do capitalismo. São Paulo: n-1, 2022, p. 63. Tradução de Jorgge Menna Barreto e Yudi Rafael.
[2] Idem, p. 40.
[3] Idem, p. 68.
[4] Idem, p. 41.
[5] “Salão de 1859” apud LICHTENSTEIN, Jacqueline (org.). A pintura: textos essenciais. Vol. 10: os gêneros pictóricos. São Paulo: Editora 34, 2008, p. 124. Tradução de Magnólia Costa.
Imprensa
Madame M., “O retorno do surreal?”
Revista seLecT_ceLesTe, vol. 12, nº 58, jun-ago, 2023



